março 24, 2012

Passa sem porte

 
Angústia ao jantar. Não é difícil, basta ligar a televisão por volta das 20 horas. Nem sempre dá, nem sempre me apetece, mas nem sempre quero passar ao lado das coisas, não quero, não devo. Tentando preservar a sanidade num mundo de loucuras e exageros, horrores e injustiças, por vezes somos levados a olhar para outras coisas, mais leves, mais alegres, mais risonhas e que, felizmente, existem e vão existir, simples e que nos injetam de pequenos e momentâneos contentamentos .
Mas quando se abre os olhos, adormecidos na letargia cómoda e feliz dos dias ao largo das notícias catástrofe, não se pode deixar de sentir, sentir coisas que não queremos sentir, porque nos doem, envergonham e porque refletem situações que pura e simplesmente  não deveriam existir.
Donde veio este choque, inesperado para uma manhã que se pretende tranquila? Ver, ontem, a situação dos imigrantes romenos em Lisboa, a viverem debaixo da ponte, em condições indignas, humilhantes, incomportáveis para quem vive nesta Europa ainda assim desenvolvida e rica. Talvez precisamente por isso. Como podem cidadãos da Comunidade Europeia, e não excluindo obviamente os que não são, viver assim? Como podem os seus de sempre longínquos sonhos ser defraudados desta maneira?
Não são os únicos a viver na rua. Pois não são e entristece-me ver que são muitos, cada vez mais. Gente que perdeu tudo, que desistiu de viver, que se arrasta como pode por uma vida sem rumo nem alegrias. Mas muitos dos que estarão nas ruas das grandes cidades, terão tido uma vida anterior que se desvaneceu, por variadas razões. Álcool, droga, muitas vezes, desemprego também, solidão profunda de quem não tem nada a onde se agarrar. Novos e velhos, o reflexo de escolhas ou de sociedades impiedosas, mesmo letais.
Mas no caso da imigração (e da emigração, se se tratar de portugueses lá fora), isto choca-me ainda mais. O que faz alguém deixar o seu país, família,  para escolher viver e trabalhar num outro? Amores e estudos, sentido de aventura e curiosidade globetrotter à parte, o que move, em sentido absolutamente literal, estas pessoas é a necessidade de encetarem uma nova vida - uma que lhes ofereça trabalho, rendimento, condições de vida que não puderem obter, claramente, nos seus países de origem. 
Ver o seu projeto completamente lesado e iludido é causador de uma dor sem fim. A que vêm? Porque vêm? Quem lhes diz para virem? Quem os deixa virem? Porque não há quem os receba, ainda se sem emprego à vista? Porque são questões humanitárias em que acabam por se tornar estas entradas. Porque não há centros de recolhimento desta gente? Porque não há uma cama? Uma política humana que seja concertada com os países de origem - ainda mais se estão, neste caso, na Comunidade Europeia? Um quotidiano mais digno?
Claro que vozes zangadas iriam surgir. Do género não temos que pagar isto com os nossos impostos, não temos nada a ver com quem vem e nos exige esforços de contribuição monetária a partir do nosso trabalho. Mas estas pessoas não sabem o que isto é. Não conseguem colocar-se nesse plano e não conseguem ver que também há quem, lá não sei onde, pense exatamente assim, acerca dos estrangeiros nos seus países.  Estranhos em terra alheia que podemos ser nós. Não querem nem sabem compreender o sofrimento e a tristeza máxima que é ousar começar do zero e descer abaixo de zero. Não sabem o que é ser tratados como lixo, numa exclusão cruel e estereotipada que não serve a humanidade. Ou o que resta dela.
Choque. Digam-me quem é responsável por isto e o que se pode fazer. Digam-me que esta parte eu também não sei. Só sei que não pode ser assim. Porque não quero olhar para o lado, distrair-me com as coisas triviais quando o que vi nos pede total atenção e cuidado. Digam-me que há solução. Angústia para o jantar, outra vez, não. Deles, sobretudo. Infelizmente, deles.

2 comentários:

  1. Eles não têm angústia para o jantar, simplesmente, porque não têm jantar.

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  2. Pois não, jrd. Era bom que fosse só angústia, neste caso. É muito mais do que isso,e como o lamento.

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