abril 29, 2014

Ainda um outro abril

Este texto foi escrito por Sara Vieira, docente de Inglês/Alemão, de Aveiro.

Para quem não sabe, há 40 anos eu não estava em lugar nenhum, pelo menos nenhum de que eu me lembre (se acreditarmos em vidas passadas) já que ainda não tinha nascido. Sei que a minha mãe estava em casa dos patrões (cujos filhos passaram a noite na cave a ouvir rádio) e não percebeu nada daquilo porque o dia dela foi igual a tantos outros. Sei que as pessoas não sabiam muito bem o que fazer em Aveiro, entre a ânsia de festejar e o medo de que desse para o torto.
A minha imagem do 25 de abril

Eu só nasci quase três anos depois. Portanto, para mim, o 25 de Abril é uma sucessão de momentos que eu não percebia. Manifestações (que hoje não sei se eram do 25 de Abril ou do 1.º de Maio) que eu ia ver descer a Avenida pela mão dos meus pais, com cravos, bandeiras vermelhas, palavras de ordem, discursos sempre mais ou menos iguais e canções da Brigada Victor Jara. Ah, e havia a feira, imensas barracas cheias de coisas que nós íamos ver enquanto os senhores de braço no ar falavam. Era sempre um dia de vestir a roupa nova e ir para o Rossio (tirando uma vez em que fomos visitar os meus avós e caiu a maior camada de granizo de que me lembro).
Quando se é criança, dias assim são marcados pelas imagens e pela emoção, e como o 25 de Abril e o 1.º de Maio eram tão parecidos e tão próximos, hoje não consigo distingui-los na memória. E depois as incoerências que nos espantam aos 4 ou 5 anos, como o estranhamento de haver um feriado por causa de uma ponte que tinha nome de data em vez de nome de ponte e afinal era de todos os dias, não era de um dia só. Porque na minha cidade as pontes tinham nome: a ponte de Pau (que não era de madeira), a ponte das Pirâmides (que não tinha pirâmides nenhumas à vista que não fossem os montes de sal que eram mais para o cone), a ponte de Esgueira (que era um túnel por baixo da linha do comboio) e as Pontes (que era uma praça por cima da ria). Agora a Ponte 25 de Abril devia ser mesmo muito importante para ter um feriado.

E havia sempre eleições. Eu gostava de eleições. Lá ia eu pela mão da minha mãe para uma grande fila que se desdobrava em muitas filas dentro do pavilhão desportivo até a uma mesa com uns senhores de gravata que liam alto o nome da minha mãe (o nome todo!) e depois davam-lhe um papel e íamos a uma mesinha muito escondidinhas e ela escrevia qualquer coisa e o papel ia para uma caixa grande e pronto. Mas era de certeza uma coisa muito séria e muito importante.
Depois cresci e o 25 de Abril tornou-se muito mais importante. Era FERIADO! Feriado, ah, essa palavra doce que queria dizer não ter escola. Esse é que foi o problema. Para os que nasceram depois de 74, mais do que qualquer coisa, o 25 de Abril tornou-se só um feriado.

Olhar de menino tímido que ousou o sonho

Hoje, o maior problema deste país é que para as pessoas como eu e mais novas do que eu, o 25 de Abril é um dia a cores no calendário em que não vamos nem para a escola, nem para o trabalho. Triste, triste povo este que não tem memória. Triste povo que hoje tem saudades da ditadura e admira Salazar. Triste povo este que não tem ideais nem sonhos.
E se eu pudesse escolher lembrar-me de uma vida passada, queria lembrar-me de ter estado em Lisboa no dia 25 de Abril de 1974 em cima de uma chaimite com um cravo no cano da G3, ou melhor, ter sido a mulher que deu o cravo ao soldado ou a criança que atravessou a minha infância nos cartazes nas paredes. Quem me dera que fosse possível que toda a gente neste país tivesse a verdadeira memória do 25 de Abril e a defendesse com unhas e dentes e cravos vermelhos.

abril 23, 2014

A memória dos quarenta

Como não terei tempo para muito mais até lá, aqui fica em mosaico a revolução que se fez e que mudou os nossos dias. Não adianta retirarem-lhe significado pelo que podia ter acontecido a seguir e pelo que tem acontecido entretanto. A coragem emergiu, o silêncio quebrou-se, a noite iluminou-se. Não é, e para que definitivamente se entranhe, nada pouco. 



abril 21, 2014

Mais do que óbvio

É bom falar, ler acerca do óbvio quando o óbvio é a verdade. A natureza é linda, o amor de mãe é incondicional, a liberdade é preciosa. E mais, tanto mais. Mas não é de todo suportável, o óbvio, quando ele é a tradução da mentira. Aí, não quero ouvir falar dele nem lê-lo. Obviamente.

abril 20, 2014

Ao largo


Tenho-me visto muito atrapalhada com a hifenização sob o novo Acordo Ortográfico, como se já devem ter dado conta por aqui. Se já não era propriamente fã de hífens antes, imagine-se agora. Um desacerto, confesso. Não defendi o AO mas também não fui contra, considerei-o dado adquirido, sendo eu docente ao serviço de uma escola. Ainda por cima, e graças a deus, falo e escrevo em inglês nas aulas, o que é uma considerável vantagem a vários níveis (mas lembre-se, as diferenças entre as variantes de inglês na grafia são muito poucas). Vai daí que, ao ter de mudar, quanto antes melhor e também não me vi nem vejo a escrever de uma forma nos documentos da escola e de outra na vida pessoal, respeito quem o faça e quem o consiga, mas pessoalmente  tenho mais que fazer e em que pensar. E isso leva-me à conclusão deste post nada pascal: há hífens que deviam estar por aqui e outros que não deviam estar (e mais coisas, sei, imagino) mas de todas as preocupações que vou tendo esta é manifestamente insignificante para não dizer nula. O essencial, aquilo que verdadeiramente interessa para irmos indo e não muito mal, anda mesmo muito longe daqui. 

abril 16, 2014

Onde não pertencemos





"Muitos dos nossos problemas nascem de nos termos deixado arrastar, talvez por complacência para connosco e para com os outros, para espaços que não são os nossos e frequentar pessoas que não nos convêm. Elas, as pessoas que não nos convêm, sempre que tiverem oportunidade não deixarão de assinalar a nossa inconveniência."
Jorge Carreira Maia (Kyrie Eleison)

A verdade é esta: continuamos a fazer coisas - frequentar espaços e pessoas que não nos convêm - porque somos demasiados complacentes, porque não sabemos ou não queremos dizer não, porque queremos agradar a quem nos é próximo, em determinada altura ou circunstância, porque não queremos defraudar as expetativas dos outros, porque nos pomos em dúvida a nós próprios, porque pensamos que fazer igual pode ser melhor, mesmo antecipando que não seja nem é, porque estamos presos por algum tipo de sentimento, porque temos à nossa volta pessoas fracas que manipulam as superiores, porque queremos dar uma ou mais uma oportunidade, porque o ´porque não´ nos ocorre, porque somos ou nos tornamos indulgentes ao ponto de abusarem de nós, porque não sabemos estar sozinhos, porque receamos o confronto com a nossa verdade, porque receamos ser diferentes, porque fazemos más escolhas, porque a vida é mesmo assim, porque não devia ser mas vai sendo. Até ao momento da epifania - não nos convêm. E das duas uma: ou sempre o soubemos e fomos bondosos e parvos ou nunca o percebemos por ilusão, ingenuidade e insegurança. Por isso a maturidade é essencial - os fretes, espaciais ou sociais, até familiares, ou na verdade os problemas, passam a ser muito menos. Ou, se corajosos formos, podem deixar pura e simplesmente de existir.

O melhor e o pior


O melhor do ser humano visto hoje num exemplo de corajosa superação. Uma mulher, dançarina, vítima do atentado em Boston há um ano, volta a dançar após o implante de uma perna biónica. E o especialista do IMT que, com a sua equipa, tudo isso possibilitou.
O pior do ser humano visto hoje num exemplo de corrupta degradação. Uma telefonista permitiu e promoveu, é bem possível, a entrada de todo o tipo de substâncias e produtos ilícitos numa prisão. Sem falar da mãe americana e dos 7 bebés, na mais absoluta e cruel loucura.

abril 14, 2014

Controverso




1. Não é possível fazer calar os capitães de abril ou não ter interesse no que dizem. Simplesmente porque ainda vivem e carregam na memória os dias antes e depois. E nós temos que lhes estar gratos, mesmo quem não soube o que era o antes e é livre desde que nasceu. Precisamente por isso, esses, nós, temos que lhes estar agradecidos por terem mudado o curso da nossa história e dos nossos dias. Não faço ideia se há espaço para falarem na assembleia ou não, mas se não houver devia haver. Os intervenientes na história na sua forma mais direta estão vivos, repito, o acontecimento é recente - o que são 40 anos na linha do tempo?- e esquecê-los neste dia é uma profunda forma de ingratidão. Se o esquecimento acaba por ser natural com a passagem do tempo, quando as gerações que vivem certos acontecimentos dão lugar a outras, aqui ainda não. Não é possível esquecê-los, ainda, e ignorá-los. A nossa humildade, enquanto povo, em reconhecer a sua coragem e importância devia ser muito maior. Devia existir, simplesmente. 


2. A remota possibilidade (será?) de Durão Barroso se candidatar à presidência da república deixa-me quase em estado crítico. Não lhe reconheço nenhum mérito nem possui qualquer envergadura moral ou intelectual para desempenhar este cargo. Quando discursa parece-me sempre artificial, como se estivesse a posar para uma fotografia, à espera de causar algum tipo de impacto. Desconheço se na vida quotidiana é um tipo simples, honesto e com qualidades várias, pode ser que sim, claro. Mas politicamente é um desastre, compactuou na invasão do Iraque, não me parece ter espinha dorsal para dizer não e seria anedótico tê-lo a representar-me. Mas enfim, tudo é possível, sobretudo dar-se muita importância e valor histórico a quem não o merece e desvalorizar-se quem a ele tem o máximo direito.

abril 13, 2014

Palavras feias (e falta de palavras bonitas)



Detesto falta de educação. Cada vez é mais notória, abrigada sob falsos conceitos de liberdade e humor. São palavrões a torto e a direito em ocasiões sociais, sem qualquer respeito em relação a quem nunca se viu, são palavrões nos transportes públicos, são palavrões ao volante, sobretudo se veem uma mulher sozinha, são palavrões nas escolas e dentro da sala de aula, são palavrões na rua, transversais a nível das idades, dos sexos, das localidades e das profissões. Se acho graça a um ou outro que seja dito num determinado contexto em que haja uma familiaridade considerável entre os presentes, já quando os meus ouvidos os escutam fora de tudo o que seria mais normal e aceitável, o gelo instala-se de imediato.
Também é verdade que a falta de educação não se esgota no abundante vernáculo português, neste caso. Ela surge em forma de ingrata indiferença perante um gesto simpático, ela reside na incapacidade de dizer desculpe e obrigado, ela mora na falta de chá em doses industriais a propósito de pequenas coisas do quotidiano. Convenhamos, o nosso povo, porque dos outros não posso saber da mesma forma, é extremamente mal educado, as gerações mais novas parecem não ter - não têm, na verdade - o mínimo respeito pelos mais velhos, o machismo bronco ainda subsiste por aí em alguns cantos, o modernismo das relações entre homens e mulheres aboliu completamente o cavalheirismo. Porque certas raparigas e mulheres também acompanham, decerto com receio de serem postas de lado e chamadas de antiquadas, chatas e sem interesse como companhia.
Gosto de ser livre, rir é bom, ser divertido, naturalmente, e ter sentido de humor também. Mas o verdadeiro humor anda longe desta descontração boçalmente brejeira, forjada e mentirosa, que é a de aparentemente ser-se livre nos costumes, ainda que a cabeça, o resto, esteja ainda a habitar em tempos medievais. Que povo pequeno armado em grande, onde ser grande significa sonhar em/ou ter Ferraris e ostentar gadgets e outras coisa mais. A grandeza de alma, a nobreza interior, essa não existe, está demodé. E eu também, pelos vistos, porque me perturba esta má educação. E não estou a falar de escola nem de sistemas educativos. A sociedade em que vivemos é mal educada e isto devia preocupar-nos a todos.

abril 10, 2014

Quartos sem vista sobre a cidade nem coisa alguma

A desigualdade nunca é mais cruel quando atinge quem nada fez para ser desigual. Este desequilíbrio nas imagens de 21 quartos de crianças espalhadas pelo mundo inteiro é manifestamente doloroso de ver. São chocantes estas fotografias, que mostram a mais profunda ausência de conforto e de condições minimamente dignas que uma criança só podia e merece ter. Para crescer saudável e ter confiança no seu mundo, projetando-se depois no mundo dos outros de forma positiva. E mais chocante é saber que são muito mais do que apenas imagens. 


Para ver mais, aqui.

abril 09, 2014

Quando uma ata o é antes de o ser



Sempre pensei, e pelos vistos erradamente, que uma ata era o resumo feito durante ou após uma reunião ou uma situação formal de qualquer espécie que necessitasse de um registo escrito para provas na posteridade. Pessoalmente, e na minha área profissional, gosto de tirar apontamentos e escrevê-las depois, já que tenho evidentes dificuldades em realizá-las com a concentração e o tempo necessários enquanto as coisas decorrem. Defeito meu, certo, admito. Mas agora está-se a ir por um caminho que estranho porque decididamente não entranho. Os responsáveis pelas atas escrevem-nas antes da reunião - com a sua perspetiva e com o rumo que desta forma acabam por lhes dar - e leem-nas, ao invés de falarem de forma espontânea, e acompanhando o decurso natural da reunião, ainda que sempre subordinada a uma necessária ordem de trabalhos. Estas leituras das atas nestes termos, como forma de conduzir uma reunião, põem-me a voar para outros lados, para longe dali. E então quando são projetadas ainda pior. Continuo a gostar que alguém nos consiga envolver com o seu discurso. A comunicação é uma coisa que valorizo e, desta forma, uma coisa completamente diferente para mim. Não gosto de reuniões centradas, controladas e pré-estabelecidas. " O conselho de turma considerou o comportamento satisfatório..." antes de alguém abrir a boca. Depois vem a pergunta, olhos já fora do papel - "concordam"? Mas eu preferia que não fosse por esta ordem. O cúmulo aconteceu uma vez quando os presentes, todos já sentados, aguardavam o começo da reunião. A pessoa que a dirigia, sendo responsável pela ata, pois, começou a ler: "Depois da apresentação dos docentes..." Bom, estarreceu-se-me logo ali o cérebro. Qual apresentação? Ninguém havia falado nem dito o nome nem coisa parecida. Esta coisa de antecipar tudo torna-se, assim, absolutamente ridícula. Antecipa-se de tal maneira, por forma a agilizar, como está na moda dizer-se, que se diz terem sido feitas coisas antes de elas acontecerem. Escritas, lidas, antes do tempo. Quase proféticas. Se já tenho dificuldade em escrever durante, por falha minha, repito, imagine-se o que sinto quando se escreve antes. Passo. As atas são um resumo do que se passou,  não é preciso terem 20 páginas - nem 10 - como se isso fosse sinónimo de qualidade, concentremo-nos no essencial. Pessoalmente não projeto uma linha de uma ata, aliás não podia porque não a faço antes. Não à necessidade de controlar tudo nem de antecipar o não antecipável. Bem ou mal, comigo a coisa - a ata - só desata mesmo depois da reunião.

abril 07, 2014

Uma outra perspetiva


    

No dia 18 de março o AE teve a oportunidade de ser apresentado no auditório da minha escola na rubrica "Uma outra perspetiva de escrita", atividade inserida na Semana da Leitura, e que se seguiu à apresentação de um romance de Filipe S. L. Monteiro. Esta foi uma simpática ideia do Departamento de Línguas onde me insiro e foi algo que me deu bastante prazer fazer, não só porque foi uma forma de levar o AE a outras pessoas que o desconheciam  como porque me deu oportunidade de estar à conversa sobre temas que me interessam. E o que me faz escrever aqui umas linhas a propósito disto foi o facto de, a dada altura, eu estar a falar dos textos ou crónicas ou posts que alimentam o blogue. E então, lá fui dizendo, sem qualquer espécie de preparação, que já escrevi textos muito zangada com o mundo, ou simplesmente com alguém, que já escrevi textos muito cansada, que já escrevi textos com enxaqueca muitas vezes, que já escrevi textos dos quais agora não gosto nada, que já escrevi textos a rir-me a bandeiras despregadas, que já escrevi textos inspirados numa pessoa em concreto, que já escrevi textos para encher, que já escrevi textos com o meu filho aos pinotes à minha volta, que já escrevi textos com muito sono, que já escrevi textos estando bastante alegre, que estar muito alegre não ajuda a escrever grande coisa mas que estar extenuada não ajuda a escrever nada de nada. E como estou em final de um período estafante e desinspirador, vou, então, retirar-me para já para não registar mais nada que não tenha interesse absolutamente nenhum. (Partindo do arrogante princípio que o que está acima terá algum).

abril 05, 2014

Mais e menos

                                

Cada vez mais próximos de alguém no outro lado do mundo e cada vez mais distantes do vizinho ao lado.
Cada vez mais facilitada e acessível a informação e cada vez mais ignorantes e dispersos estão alunos e outros.
Cada vez mais degradadas as condições de trabalho e cada vez mais reduzidos os salários.
Cada vez mais revoltados com a crise e o resto e cada vez mais conformados e calados.
Cada vez mais mergulhados no consumo e cada vez mais infelizes.
Cada vez mais ativas, as mulheres, e cada vez mais vítimas de cansaço.
Cada vez mais estímulos e encontros sociais e cada vez mais solidão.
Cada vez mais ambições e sonhos e cada vez mais frustração.
Cada vez mais leis e direitos humanos e cada vez mais injustiças.
Cada vez mais presente a imagem e cada vez mais ausente a verdade.
Cada vez mais e cada vez menos.