dezembro 28, 2010

Celebrações


Aqui há uns anos li uma hilariante crónica da Júlia Pinheiro sobre a passagem de ano. Arrancou-me várias e sonoras gargalhadas, pois de forma engraçada e sagaz foi capaz de captar o ridículo que às vezes tal festa pode conter. Sobretudo aquela parte em que ela diz que àquela hora já mais de metade se arrependeram de ter saído de casa.
A minha posição face ao reveillon não é, lamento eu, nem tão brilhante nem tão bem-humorada, pois acabei sempre por ter uma opinião um pouco dúbia em relação ao evento. Por um lado, gosto de sair e de me divertir, por outro, não gosto que me digam quando. Por um lado, sempre quis celebrar com os outros, fazer parte dos "felizes", por outro, celebrar o quê não sei exactamente porque no fundo no fundo é uma festa que não me diz rigorosamente nada. Não me sinto especialmente animada por terminar um ano velho e começar um novo, detesto balanços, não tenho nem quero ter grandes expectativas só porque se altera uma data no calendário e na verdade e obviamente engolir ou não as passas é literalmente igual ao litro, já que nos últimos anos me deixei disso, consciente e propositadamente, e a vida graças a deus, continuou e avançou.
Penso que a maturidade e a maternidade, ainda por cima conjugadas, trazem uma serenidade incrível. Não se está constantemente a fazer planos e a desejar acontecimentos incomuns porque a vida fica bem ocupada e momentos felizes podem ser de outra natureza, bem simples e mais caseiros, porventura. Não há necessidade de tornar o tempo ocupado e recear ficar sozinho porque de facto não se está mais sozinho. Quer dizer, pode estar-se socialmente mas não se está no coração. Daí que esta data não me cause mais nenhuma angústia (de ter de ir ou fazer algo) ou, simultaneamente, gosto especial. Que trabalheira, a de ter de arranjar um sítio para ir porque toda a gente faz o mesmo. Com  os anos, e thank god, trata-se agora quase de uma noite normal. Ficar em casa surge como algo natural e até prazeiroso. Não o será completamente porque somos bombardeados com imagens de festejos e aparente felicidade espalhadas pelos quatro cantos do mundo, e o lado social às vezes ainda lá saltita um pouquito. Mas estamos no bom caminho...
De resto, não sou apreciadora de todo da maior parte das datas assinaláveis no calendário. As ocasiões que gosto de celebrar, realmente, são os aniversários. São exclusivos, únicos, pertencem àquela pessoa e a mais ninguém. Aí admito gostar de festejar e muito. Precisamente porque não sou obrigada a e isso é valioso e para além disso a pessoa é valorizada, sem o pano de fundo das massas em histeria que o calendário acarretaria. Concluindo, ainda digo viva a festa e as festas. Não as mainstream, já disse, mas aquelas que eu escolho celebrar e onde eu possa optar por coisas e gestos bem simples ou mais faustosos.

dezembro 03, 2010

Palavras que faltam ou de como a generosidade se faz com verbos

       

A propósito do voluntarismo e da abnegação bondosa de pessoas como os médicos sem fronteiras, apetece-me hoje falar da generosidade vista sob um outro prisma. De facto, parece-me que ela não se esgota em estender a mão a quem precisa, ou seja, ela consiste em mais do que apenas dar "fisicamente", de acordo com as necessidades de ordem prática que se observam por esse mundo.
         Há, para mim, algo precioso a que chamaria a "generosidade das palavras" e que considero como das coisas mais fundamentais para tornar as pessoas psicologicamente felizes. Infelizmente, constato que grande parte das pessoas, por vezes até muito solidárias nas causas, não cultiva esta belíssima característica. Como se, ao fazê-lo, pudessem perder alguma importância ou poder em relação ao outro. Porque muitas das relações que estabelecemos com os outros assenta numa estranha dinâmica de poder, em que se pretende dominar e, assim sendo, não reconhecer o valor de outrém. Francesco Alberoni, cujos livros devoro, fala exactamente disso no seu livro "O Optimismo". Diz este sociólogo italiano que há pessoas que dominam outras anos e anos, sendo mesmo infinitamente medíocres e inseguras, pelo não uso do elogio, do reconhecimento, da valorização. Mantêm as suas "vítimas" presas, à espera de uma apreciação positiva, de uma palavra elogiosa, de um afecto verbal. Fazem o outro, superior na inteligência e na alma, sentir-se diminuído, frágil e sem qualidades.
        Ora isto é de uma crueldade e de uma frieza atrozes. E podem ser pessoas até simpáticas e faladoras a fazê-lo, ainda que as silenciosas e frustradas o possam fazer também. Penso poder dizer que há pessoas assim em todo o lado. Que teimam em não ser generosas verbalmente. Será que é por não serem capazes de o ser? E se tentassem, que tal? São muito tímidas? Que tal ir soltando essa timidez e abrir mais o coração? Não ficariam porventura mais reconfortadas com o obrigado vindo do outro lado? Dizer - tens talento, fizeste um trabalho excelente, isto está óptimo, gostei imenso, tu és fantástico, parabéns, e outras palavras motivadoras e estimulantes - é assim tão difícil? Ou é mesmo consciente e fruto de algum sadismo? Serão ecos de inveja mal disfarçada? Lamentável que assim seja. Sobretudo se se passar ao nível de familiares ou amigos...
        Parece-me que todos temos de fazer um esforço no sentido de fomentarmos cada vez mais a dávida das palavras...O nosso espírito português, não é segredo nem novidade, é algo mesquinho, não gosta muito que os outros brilhem, receamos perder importância ou protagonismo, isto é estupidamente ridículo e profundamente triste. Deveríamos saber que positivismo em relação ao trabalho, criatividade, habilidades e qualidades dos outros é algo contagiante, que palavras calorosas, inspiradoras e afáveis trazem felicidade e realização, e que receberão gratidão e amizade em troca. Há decididamente muito espaço para muitas, mesmo infinitas, estrelas cintilarem, não temamos ficar na sombra por reconhecermos o valor de alguém.
        Eugénio de Andrade diz, num dos seus belos poemas, que as palavras podem ser como um punhal... Mas diz também que algumas delas são como um cristal.  Ferir ou criar brilho, eis a questão. É nossa a escolha e está ao alcance de todos nós. Basta querer ser, verbal e afectivamente, generoso.

novembro 28, 2010

Fronteiras de dor

                         
         Sou uma grande felizarda e muito feliz. Tenho tudo e não me falta nada. Peço desculpa por ser exigente, ser caprichosa, querer mais e queixar-me. A  minha vida é óptima e mais não se deve desejar. Mas qual a razão de tais conclusões, indaga-se o leitor. Certo, há de facto uma explicação. É que ontem revi Beyond Borders (Amor sem Fronteiras). E se juntar O Fiel Jardineiro e Diamante de Sangue, fica completa a trilogia de verdadeiros sangue, suor e lágrimas que tais filmes comportam. Vê-los significa simplesmente repensar todo o nosso comportamento...
         Temos sorte. Muita mesmo. Viver na Europa, EUA, Japão e afins é uma golpada de sorte decretada à nascença. Tirando a doença, que não distingue continentes, cores, nacionalidades e pessoas, os nossos problemas parecem ridículos perante a angústia e sofrimento de outros que vivem em zonas devastadas pela fome, pela guerra, pelo ódio. Na verdade, nós não sabemos nada acerca do sofrimento. Nada mesmo. Não sabemos o que é lutar para literalmente viver, ou melhor, sobreviver. Resistir, e muitas vezes sucumbir, perante grandes adversidades. Que consistem na falta de condições básicas para subsistir. Coisas perfeitamente triviais para a maioria de nós, tomadas como garantidas desde sempre.
          Visionar estes filmes dá-nos um soco no estômago, e faz-nos sentir alguma vergonha de nós próprios... O facto de sermos tão sortudos, o facto de não ajudarmos, provavelmente como deveríamos, o facto de não estarmos lá e de estarmos numa zona de conforto e segurança, o facto de criarmos problemas a partir do nada... Pelo menos durante duas horas, penso poder dizer que é impossível não reflectir na injustiça de tudo isso, na profunda desigualdade em que os seres humanos vivem, na tristeza e na angústia de vidas fora do próprio controlo, na imensa crueldade de certas existências.
          O tema dos refugiados, deslocados e outros que tais sempre me emocionou profundamente.  Não tendo eu própria jeito nenhum para o voluntariado, e chocando-me facilmente com a miséria, admiro de forma invulgar o trabalho das organizações não-governamentais e outras, que trabalham no terreno, para aliviar o sofrimento das pessoas em necessidade. Deixar o conforto para trás, ir ao incerto e trabalhar de forma abnegada e solidária, por pura bondade e capacidade de sacrifício, trata-se de algo admirável. A personagem de Nick é fantástica, emociona-nos, comove-nos e, diria, move-nos. Mas não são só os médicos que merecem louvores. Desde pessoal voluntário até trabalhadores dessas organizações, até aos jornalistas e repórteres que cobrem as notícias de regiões perigosas, pondo em risco a sua própria vida, todos eles merecem a nossa admiração. Pela ajuda, pela coragem, pelo abdicar de uma vida fácil e confortável. Penso que também são heróis, para além dos nativos que vivem em grande sofrimento físico e psicológico.
           Já há algum tempo que queria dizer tudo isto "publicamente". E, pelos comentários que vi na internet acerca do filme de ontem, não sou a única a manifestar desconforto perante as pequenas irritações do meu quotidiano. Elas não são nada, comparadas com boa parte dos problemas do real mundo. Claro que também não nos vamos torturar infinitamente por causa disso mas se tivermos consciência do que verdadeiramente importa, então seremos todos bem (mais) felizes...do lado de cá. Do lado de lá...bem, não será de felicidade que se trata. Apenas, e para já, tão somente, vida....

novembro 13, 2010

Uma espécie de morte saiu à rua

                                                                   
Aqui há tempos um grupo de estudantes chineses que estudam português deslocaram-se ao nosso país. Diziam ter ficado chocados com o facto de, cá, não haver pessoas nas ruas. Na China estão habituados a ver muitas e muitas, claro. Mas o que é certo é que não se trata apenas de uma situação de carácter demográfico. A verdade é que as pessoas em Portugal desapareceram das ruas. Não posso falar por todas as cidades mas por aquelas em que me movo. A culpa é dos centros comerciais, obviamente. O facto de ser prático ter as lojas todas à mão e de se estar abrigado do frio e da chuva explica as romarias diárias e ainda mais de fim de semana para tais mecas do consumismo. Acrescentando-se o facto do pequeno comércio ter sido arruinado pelas grandes superfícies, desaparecendo lojas e lojas das ruas e avenidas, está ainda melhor explicado o fenómeno.
Se no Verão as pessoas andam invariavelmente na ruas para apanhar sol e ar fresco, já no Outono e Inverno se altera o panorama. As ruas estão desertas, tristes, sem vida. Na altura do Natal nem a iluminação traz as pessoas para a rua, enchendo-se os centros comerciais, pelo contrário. Lembro-me de Aveiro na altura em que ainda não havia Fórum nem Feira Nova nem nada do género. Lembro-me de fazer compras natalícias debaixo de frio e às vezes de chuva pela avenida acima. Lembro-me dessa azáfama própria da quadra, das pequenas lojas estarem cheias e de ver tanta gente na rua. E de uma espécie de felicidade que se sentia, o movimento, a luz...

Sinto verdadeiramente saudades desses tempos. As ruas sem ninguém, à noite ( e agora anoitece muito cedo) chegam a ser algo assustadoras, escuras e sem alma. As pessoas pouco ou nada (con)vivem nas ruas, as janelas encerram-se e certos sítios são um autêntico deserto. A essa hora, as grandes superfícies apinham-se de gente. Os centros comerciais transbordam de pessoas, ávidas de compras e de comida rápida. Até os cinemas como os conhecíamos deixaram de existir. Também passaram para os centros comerciais. As salas estão espalhadas por um corredor escuro e as pessoas refugiam-se em várias ao mesmo tempo e pouco ou nada se encontram no intervalo. Os cinemas ao estilo de Cinema Paraíso deixaram de nos fazer sonhar. Aliás, já agora, também esse filme é emblemático do "progresso" de uma cidade. De como a alma desaparece e surge uma cidade impessoal e sem margem para sonhos. Na rua estão carros e carros e o velho cinema foi demolido. Fica a nostalgia de um tempo que não voltará.
Sem ser saudosista, também às vezes sinto alguma nostalgia do que era ou foi... Agora que o Inverno está à porta e o Natal também, bem que gostaria de ver vida nas ruas da cidade. Talvez porque a cidade sempre nos lembre um local de encontros e de movimento, era bom termos mais e muitas pessoas que a vivessem fora de portas...

novembro 06, 2010

Um eléctrico chamado desejo

                                                                                                             
A peça Um Eléctrico Chamado Desejo esteve em cartaz em Lisboa. Li-a quando frequentei a universidade, numa altura em que praticamente devorei as obras de Tennessee Williams. A actriz Alexandra Lencastre e o actor Albano Jerónimo dão corpo e voz às duas principais personagens, Blanche DuBois e Stanley Kowalski. Inesquecíveis figuras do texto dramático, também a sua representação no cinema, a preto e branco filmado, foi fulgurante, com os actores Vivien Leigh e um jovem Marlon Brando a lançarem-nas definitivamente para a posteridade.
Devo dizer que o facto de ter visto o filme terá contribuído para a minha paixão por tal história. E a personagem de Stanley Kowalski tornou-se bem mais "atraente" devido à interpretação magnética de Marlon Brando. Gostando tanto do actor, ficou difícil vê-lo como detestável...

Bem que gostaria de rever esta peça, agora em palco, do lado de cá, obviamente. Rever o confronto entre uma senhora educada, refinada,  mas também desiludida, fantasista e decadente, e o seu jovem cunhado, rude, sem refinamento, sensual e quase animalesco. E rever como esse confronto comporta uma carga sexual altamente considerável, de como os opostos se atraem, culminando essa relação na violação...mostrando Stanley o seu carácter intempestivo, bruto, para dizer o mínimo, ao expoente máximo. E relembrar a figura de Stella, a irmã mais nova de Blanche, casada com Stanley, que muito dócil, perdoa os comportamentos do marido devido à química sexual que existe entre eles e mantendo-a , dessa forma, presa a um marido algo violento.

O facto de Blanche ser sulista ( a história passa-se em Nova Orleães) e o seu cunhado ser originário da Polónia também parece põr em evidência a confrontação entre dois mundos, um estilo de vida prestes a desaparecer e outro a emergir, com a alteração e conflitos próprios dos fenómenos de imigração nos Estados Unidos. Uma era algo colonial que termina e outra mais urbana, trabalhista, que começa. Sonhos, práticas e perspectivas de vida em tudo diferentes.

Penso também que, sendo Williams homossexual, terá pintado, neste confronto emblemático e simbólico,  o homem com cores algo negativas e ter-se-á identificado com a mulher. Apesar dos seus ares e verdades serem também falsas, a sensibilidade de Blanche está lá, e não há como a não apreciarmos.  Quanto a Stanley, é básico e até sem moral, mas poder-se-á (de verdade?) dizer, também, autêntico. Nada como ver ou rever a peça para tirar as nossas próprias conclusões. Em palco ou na tela Blanche perde irremediavelmente, mas dentro do nosso coração?

                                      

outubro 22, 2010

QualIDADE


A obsessão com a imagem e com a eterna juventude tem feito muitas vítimas, eu diria precoces, nos media no nosso país, nomeadamente no mundo da televisão. São facilmente postos na prateleira apresentadores, jornalistas, repórteres e até actores que ultrapassem uma determinada faixa etária. Qualquer coisa como ao perder-se frescura perde-se qualidade. Nada mais errado, afigura-se-me. A experiência e o tempo são mais-valias indiscutíveis a muitos níveis, mas numa área em que o visual impera, aposta-se nos rostos (e nos corpos) jovens em detrimento da sabedoria.
Não há em Portugal muitos programas que tenham como apresentadores pessoas já de idade. O nome não consegue perpetuar-se no tempo, ou se calhar fica o nome mas não há trabalho, verdadeiramente. Assim acontece também com jornalistas e repórteres. Assiste-se a um desfilar constante de novas caras no jornalismo, nos telejornais, nos programas de informação. Sobretudo nas televisões privadas. É raro um profissional bem mais velho continuar no ar, acompanhar-nos durante décadas, como acontece com programas lá fora. Ser o nome desse profissional o chamariz, como sinónimo de experiência e conhecimento de vida.
Na ficção então nem se fala. São lançados dezenas, centenas de novos actores e actores novos numa base que diria diária. Inexperiência, pouca qualidade, pouca profundidade, assim se pontua muita da ficção nacional . Entretanto, alguns da velha guarda passam por dificuldades económicas por não encontrarem trabalho. E depois temos os programas para lançar (maioritariamente falsas) estrelas na música e na dança. Todos direccionados para gente muito jovem, fundamentalmente. Assim como os reality-shows - os  participantes são jovens, essencialmente.
E assim se faz uma televisão que não privilegia as pessoas de mais idade, a sua visão das coisas e do mundo, e o relato das suas experiências de vida. Não se estranhe, pois, o desrespeito com que tantos são tratados pelas gerações mais novas... Temos vindo a retirar-lhes importância, a dizer que pouco valem e que em nada contribuem para o nosso entretenimento e informação. É pena, porque não corresponde à verdade. Ainda temos muito a aprender com eles e a rir com eles. E, por isso, digo não ao culto da imagem e da obrigatória  juventude. O tempo passa e coisas preciosas o acompanham. É só termos a oportunidade de conhecê-las.

outubro 10, 2010

Presidência

  



Acho que ainda não tinha dito publicamente que aprecio a figura de Manuel Alegre. E que, por isso, vejo com muitos bons olhos que ele me represente enquanto presidente. De facto, ele reúne uma série de características que me agradam.

Desde logo, é poeta. Alguém que tem pelas palavras o culto que ele tem não podia deixar de ser alvo da minha admiração. Sempre gostei dos escritores, dos homens das letras, dos intelectuais por serem quase automaticamente humanistas e sensíveis, de visão alargada e sábios. Acho que um presidente com esta dimensão engrandece um país, projectando-o culturalmente.

Depois, é Alegre um símbolo. Daquilo que foram lutas anteriores e porventura sonhos que se projectam até hoje. Esteve antes e tem estado depois, sempre e profundamente engagé com os valores sociais e humanistas que são apanágio de uma geração de lutadores pela liberdade.

Aparece-me também como alguém íntegro, sólido, seguro, conhecedor e ainda, fundamental para mim, de pensamento independente. O facto de estar ligado a um partido não invalida que, frequentemente, não tenha opiniões próprias e diferentes das dos demais. Tal facto revela coragem e força moral, traços de carácter imprescindíveis para mim.

E depois tem uma presença muito agradável, passando por uma voz carismática e inconfundível, até ao trato relativamente afectivo, despojado de falsidades e de concessões. Directo, verdadeiro, autêntico. Profundamente realista, também. Sem pessimismo, com uma visão a raiar o optimismo de pés-no-chão, bem como gosto.

Numa altura em que a política surge cheia de figuras de pendor economicista, tecnológico e administrativo, bem que me apetece ver alguém para quem o humanismo e as pessoas são valores inestimáveis.
Por mim, bem que pode ser (o meu) presidente.

outubro 02, 2010

A contragosto

                                                         

Tenho para mim a teoria de que as pessoas que gostam de cozinhar são bem mais felizes. Porque a comida constitui uma grande fonte de consolação e prazer. Desta forma, quem cozinha e o faz alegremente, reune uma série de condições que muito contribuem para a felicidade.
Desde já o relaxar. As pessoas que cozinham por gosto dizem relaxar na cozinha, aproveitando, desta maneira, para descomprimir de pressões laborais, nomeadadamente, e outras. Depois, o convívio. Poder convidar e satisfazer com mais ou menos deliciosas iguarias os nossos familiares, amigos e outros, é algo que dá satisfação pelo convívio que permite, pela interacção pessoal que fomenta. Sejamos francos - a maior parte dos rendez-vous familiares e sociais passa, indiscutivelmente, por uma parte entusiastacamente dedicada à comida. Convida-se muito para almoçar, jantar, lanchar e convida-se pouco para uma conversa, tertúlia ou para uma sessão de cinema sem comes e bebes a acompanhar. Ainda por cima num país claramente voltado para a gastronomia. Não me lembro, dos países que visitei, de uma nacional obsessão com a comida como a nossa. E ainda, a reputação. Continua a ser exultante uma reputação de boa cozinheira, sobretudo nas mulheres. Afinal torna-as um bom partido, a tal ideia de que os homens se prendem pelo estômago parece aqui encaixar perfeitamente.

Compreendo agora porque nunca fui um bom partido... Cozinhar não é um prazer, fujo da cozinha quando posso, só faço o muito trivial para me alimentar a mim e aos meus, portanto não relaxo minimamente nesse espaço. Reputação, zero. Pudera, não organizo jantares com muita frequência. Recebo, claro, e adoro mas tem, nesse dia, da cozinha ser partilhada a dois, e eu fico com uma ínfíma parte - a dos doces - portanto, os louros não vão, nem podiam ir, para mim. E depois com isto tudo tenho a casa menos cheia do que gostaria. Quem vem visitar-me, sem comida? Trata-se de um convite pouco apelativo.
Posto isto, concluo que adoraria saber e sobretudo gostar de cozinhar. Até porque sou gulosa e aprecio comida também. Mas tenho verificado que, com o acentuar do tempo, a minha pouca propensão para a culinária (fruto também de um carácter impaciente onde é preciso ter paciência) se tem vindo a esbater ainda mais... Se quero ser feliz,e digo infelizmente por todas as razões que apontei, tenho mesmo que sair da cozinha.

setembro 24, 2010

À la generala

                                        

Não gosto de pessoas mecânicas. Não têm nuances, são quadradas, insuportavelmente previsíveis, geralmente falam sem parar. Falam e o seu discurso agride-me, automaticamente faz-me querer ir para bem longe. Sobretudo mulheres. Aquelas que debitam certezas a torto e a direito, não têm dúvidas e são insensíveis. Que cruz ter que me relacionar com elas. Chamo-lhe mulheres generais. Se fosse homem, chutava-as para canto. São o oposto do que aprecio, são quase sempre controladoras, castradoras e umas grandes chatas. Pena que nos aparecem na família, no trabalho e, sendo assim, nem sempre lhes conseguimos escapar. Mas eu tenho reacções psicológicas e físicas imediatas que assinalam o meu desconforto emocional com este tipo de pessoas, desde um sorriso estupidamente amarelo até à falta de qualquer entusiasmo. Na verdade, deprimem-me. São pior do que o inverno, pois este ainda me aconchega em muitos momentos.

Não podemos gostar de tudo, não é verdade? Sempre houve tipos de pessoas que nos irritaram a todos. A mim são estas super convencidas das suas verdades, quase infalíveis e que não têm hesitações nem fragilidades. Aparentemente, claro. Por vezes são as mais inseguras de todas. Por essa razão arranjam capas de força que tentam, a todo o custo, fazer passar. Já dizia uma amiga minha há tempos que conhece poucas pessoas simples na sua maneira de ser. Não podia concordar mais. Falta de simplicidade, de autenticidade, disfarçadas de competentes e de sábias.

Nunca gostei do tipo mãezinha e paternalista. Dão-nos conselhos quando não são pedidos, ensinam-nos coisas que não pedimos nem queremos aprender, fazem de nós estúpidos quando tantas vezes se trata precisamente do contrário. Estas pessoas, e mulheres já agora, quase nunca têm visão. Nem inteligência emocional. Não percebem que maçam, que incomodam, que alguém mais livre pura e simplesmente não está interessado no seu discurso nem no seu mundo, que geralmente é muito pequeno e sem graça.

Muitas vezes me interrogava como era possível haver carcereiras nazis. Depois do que disse, acaba-se por compreender. As pessoas mecânicas que obedecem cegamente, que não são sensíveis, que não revelam compreensão dos estados de alma, ora, estão perfeitas para a função. Elas existem não para alegrar os nossos dias mas para os infernizar, não para nos descontrair mas para nos oprimir. Não têm alma nem cor. Posto isto, declaro que não gosto delas e já era altura de o dizer.

setembro 15, 2010

Teoria da conspiração

Concluiu-se, confirmou-se, reforçou-se, reteirou-se indubitavelmente que há vítimas no caso Casa Pia. Que, tendo elas existido, as suas queixas foram e são, desta forma, verdadeiras. Disto não  restaram dúvidas. Todos são unânimes. Agora no que diz respeito aos arguidos o caso muda de figura. Pelo que pude perceber, jornalistas, mais ou menos intelectuais, ainda põem dúvidas na sentença dos condenados. Questionam se serão culpados. Dizem que as provas são apenas as testimoniais, não sendo portanto sólidas e consistentes. O bastonário da ordem dos advogados, um homem muito pequeno nas vistas e nas afirmações, chega quase a esquecer-se das vítimas, no fulgor da defesa da pena dos arguidos. Parece-me que há alguma coisa que não bate certo. Pois então se há verdade nas suas histórias, serão os jovens que relataram os seus traumas uma espécie de self-made victims? Ou seja, há vítimas mas não há culpados? Os arguidos estão todos inocentes (todos o proclamam, à excepção de Silvino) ? Fantástica fantochada estaria a ser construida? Fantástica, também ela, teoria. Não me parece. Aliás, não acredito. Acredito que para as vítimas reviver as coisas nos media e no tribunal foi algo altamente penoso, ninguém gosta de revelar traumas de ânimo leve, eles significam sofrimento e não será fácil fazê-lo publicamente. Não vou, então, na teoria dos analistas que acham que as condenações serviram apenas para a justiça limpar a face. Agora que ela mostrou que os crimes, graças a deus, podem ser puníveis, sim. E ainda bem. Que não há nomes mediáticos nem pessoas com altos cargos que amedrontem os juízes. Acho bem. Acho mesmo muito bem.

setembro 05, 2010

Anacronismo



Às vezes acho que sou um pouco anacrónica, eu que, de uma forma geral, tanto gosto do progresso. Isto relaciona-se com o facto de não lidar muito bem com as novas tecnologias, ou parte delas. Assustam-me e algumas repelem-me, inclusivamente. Ou não lhes consigo achar piada. Playstations, consolas, iPods, IPhones, MP3s, jogos de computador e outros não me dizem nada, absolutamente nada. Pelo contrário, acho que contribuem para a confusão mental em que vivemos. Para a não assimilação das coisas de forma concentrada e concertada, para a não experiência de momentos de silêncio criativo, para a não vivência de afectos que em muito nos equilibrariam.


Anacrónica e contraditória. Ora vejamos. Gosto de internet, da informação que permite, da comunicação que posso desenvolver com os outros, das redes sociais, pois então. Há momentos em frente ao computador que podem ser valiosos, por essa comunicação com o outro, pela criatividade que certos softwares nos permitem, pelas leituras invariavelmente a só que podemos fazer e pelo enriquecimento que tudo isso significa. De qualquer maneira, passar o dia inteiro frente a um écrã já é problemático, onde estão o sol e o ar livre, os sons da rua, as experiências que o mundo verdadeiro e sensorial, de forma avassaladora e maravilhosa ou não, nos oferece. Há então que dosear com equilíbrio as vertentes real e virtual, por forma a não perdermos a melhor pitada de ambas.


Mas estava eu a dizer ao princípio que não gosto de certas tecnologias. De facto, passam-me ao lado e assusta-me que tantos jovens e até crianças já delas sejam dependentes. Se por um lado as podem estimular, também as podem reprimir, ou seja, anular certas formas de liberdade e de libertação que outros espaços e actividades despertam e desenvolvem. É a saúde que está em causa, sim. Mental e mesmo física. Os écrãs prendem e cansam, não permitem a mobilidade, difusam as percepções dos sentidos, fazem perder tempo para convívios, afastam o toque físico entre as pessoas. Em última instância, as tecnologias tornam as pessoas bem mais infelizes, se bem que muitas não se aperceberão disso e dirão que não. E, depois, violentas. Os jogos de computador que vejo jogar fomentam isso mesmo, ainda por cima num turbilhão de imagens e sons verdadeiramente alucinantes, onde está uma coisa chamada serenidade, não sabemos, não conhecemos.


Desta forma, estou fora de moda. Não quero jogar em frente a um écrã, não quero passar o dia com auscultadores nos ouvidos, não quero brincar de forma interactiva. Quero poder correr e saltar, ouvir o som das aves e do rio, sentir o sol a queimar a pele, jogar monopólio e party com os amigos, respirar ar puro e fresco, quero viajar e olhar pela janela. Ver o mundo real e sentir a sua infindável diversidade. Ai como estou demodé e ultrapassada.

agosto 18, 2010

As inverdades


A propósito dos incêndios deste mês, as notícias na televisão davam conta de que um quartel espera as viaturas há já uns longos três anos. O secretário de estado apareceu, então, a dizer que se tinha de compreender isso, uma vez que eram burocracias e trâmites legais que tinham que ser respeitados. Esta resposta tirou-me do sério. Em vez de afirmar que tal situação era incomportável e inaceitável, e de dizer que iria pessoalmente encarregar-se do caso, era o mínimo, na minha opinião, o senhor perspassou uma passividade incrível, a juntar a pouca vontade em resolver as situações com eficácia. A partir disto, extrapolei para conclusões bem gerais. É para mim incompreensível que as pessoas responsáveis não aproveitem os media para actuar de forma eficaz em problemas reais. Estão sempre preocupadas com a sua própria fotografia, sair bem é o objectivo primordial...

Recordemos quando há tiroteios ou situações mais violentas em bairros problemáticos. Aparece logo o presidente da junta ou de uma outra coisa qualquer a dizer que são situações raras, que as pessoas são pacíficas, que se trata de episódios esporádicos e outras tiradas que tais. Em vez de aproveitarem o enfoque dado e de dizerem claramente que precisam de ajuda e que as coisas realmente não estão bem, preferem atenuar, ocultar, na verdade mentir sobre a realidade. E assim não se resolvem as coisas, e assim não se julgam culpados, e assim se perpetuam comportamentos à espera de uma tragédia maior qualquer...

Vive-se, de facto, no país do faz-de-conta. As coisas são difusas e iludidas. A vaidade, o orgulho e o medo de perder o lugar de quem é responsável sobrepõe-se à verdade. Isto aflige-me, isto pertuba-me, isto revolta-me. Pronto, está dito.

agosto 02, 2010

IncoMODA


De vez em quando a minha relação com a moda assola-me os pensamentos. Basicamente acho que ela é péssima, ou seja, não tenho jeito para escolher roupa elegante, não tenho paciência para comprar roupa, não sei comprar quando as colecções saem, pareço tonta quando vejo muita roupa numa loja e me perco no meio de tanta oferta, bah, um terror. Porventura dir-se-ia que não, pois disfarço por vezes com uma outra outra peça mais compostinha, comprada num dia em que alguma obsessão com a imagem e vaidade pessoal também me atacaram e me levaram para o centro comercial, mas a verdade é que me dá muito trabalho seguir a moda, já para não falar numa espécie de ódio que por vezes sinto em relação a esse mundo. Às vezes penso que tenho alma de hippie, pois irrita-me que alguém dite aquilo que tenho que vestir ou não me e ainda por cima o faça frequentemente, ao sabor de uma estação, assim como me dana o facto de me apetecer agora comprar roupa de praia e já não haver nada pois os saldos já levaram tudo porque a nova colecção é que já impera e exibe-se nas montras e nos escaparates das lojas. Mas eu sinto calor agora, penso eu. Não me apeteceu comprar nada leve antes porque ainda estava frio, bolas. Raios para o system da moda. E ainda por cima não poder comer bolachas para caber na roupa. Raios para isto tudo, ser mulher é uma trabalheira, e não serei a primeira a dizê-lo. Sou?

julho 24, 2010

Publicidade pessoal


Estava no outro dia a pensar que há pessoas que têm uma capacidade incrível de se auto-promoverem. Vendem facilmente as suas ideias, o seu ego e sei lá mais o quê, mesmo se não há nada de realmente visionário ou surpreendente, mas elas são mestras na propaganda de si próprias, e, posto isto, dei por mim a pensar que tenho muito a aprender com elas. A reserva, que desde sempre me acompanhou em muitos domínios e que se tem acentuado com o tempo, é inimiga do sucesso, do reconhecimentos dos outros. Pareceria que não, que quem tem valor acaba sempre por ser recompensado, mas não,olha que não, como diria o outro, isto sem marketing não vai lá, as pessoas não vão ler-nos ou ouvir-nos ou convidar-nos ou promover-nos e etc e tal senão nos pusermos em bicos de pés a dizer hei olha para mim sei fazer isto sou bom naquilo e outros do género. A mim irrita-me fazer publicidade de mim mesma, é contra a minha natureza, não sei fazê-lo. Mas este mundo é voraz e a competição é jogada para valer e a doer por muita gente, portanto temos de arranjar estratégias de sobrevivência e se quisermos algum merecido destaque há que auto-promovermo-nos. Davam-me jeito umas lições de marketing pessoal., seguramente, partindo do princípio de que queria mesmo aprender, esquecendo um pouco o meu carácter ingénuo, despreocupado e sem jeito para vendas.

julho 14, 2010

O Leitor


Não vou falar de si...:) Mas do filme que finalmente consegui ver. Aluguei-o e toca de o ver pela noite dentro. Valeu a pena. Trata-se de um filme um pouco para o triste é certo, com uma carga dramática forte e um densidade psicológica assinalável, esta bem ao meu estilo. No fundo é uma história de amor muito invulgar, embora eu considere que quem mais amou foi o "miúdo"... A personagem da Hanna Schmitz, brilhantemente interpretada pela belíssima Kate Winslet é difícil, queremos gostar dela, até porque a literatura que aprecia sempre esteve ligada à sensibilidade, mas ela raramente mostra algum pingo de humanidade. Na cena do reencontro final, muitos anos mais tarde, Michael espera que ela se tenha redimido, que mostre humanismo de alguma forma, mas há ali uma frieza, uma incapacidade de sentir os afectos... Então porque se envolveu Hanna com o miúdo? Lembro-me de ter pensado em solidão, em brutal solidão quando ela desnuda o seu corpo e seduz pela primeira vez o miúdo... É um filme em que a verdade está quase sempre escondida, as razões de Hanna permanecem misteriosas como o seu passado. E fora do comum a cena em que, por orgulho, vergonha, prefere ser condenada a admitir que não sabe ler... Um filme perturbante porque diferente, inesperado, surpreendente e, sim, melancólico.

julho 03, 2010

A silly season


Entrou-se na silly season. Assinala-se este facto em revistas cor-de-rosa, falando-se do jet set e das suas deslocações rumo ao Algarve. Trata-se duma época em que se vai a banhos, em que se reunem familias em aldeias floridas, em que se fazem viagens mais ou menos interessantes. Isto para os mais afortunados...Para os que ficam por casa como eu, pelo contrário, o verão fica um pouco mais complicado- as praias portuguesas estão cheias e não há onde estacionar e os media demitem-se ainda mais da sua função cultural... De facto, tudo pára na TV, desde programas de informação a debates, desde bons programas recreativos a boas séries..., a bons filmes no cinema... e, desta forma, pára o cérebro também. O verão torna-se assim acéfalo - muito light, muito silly, para mim em demasia... Para quem durante o resto do ano não tem tempo para acompanhar a cultura e a informação, as férias seriam uma boa altura para fazer o catch up... mas a letargia colectiva de um país já em si pouco profícuo a nível da elevação mental mainstream era de esperar... mas ainda assim desespera.

maio 22, 2010

Do amor e variedades


N´”As Viagens na Minha Terra”, Almeida Garrett introduziu o verbo inglês “to flirt”, “ uma palavra que não há nem pode haver noutras línguas”, a propósito das aventuras e desventuras da sua personagem Carlos em terras britânicas. Chega a adaptá-lo para a língua portuguesa: “Eu flartava, nós flartávamos, elas flartavam” (capítulo XLIV).

De facto trata-se de um espantoso vocábulo. Poder conversar e seduzir ao mesmo tempo. Brincar, espicaçar, deixar pelo beicinho e, no outro dia, ignorar, esquecer, voar para outro local e voltar ao... mesmo. Trata-se, de alguma maneira, de romancear o que não é romance, potenciar a capacidade de sedução ao que se sabe capaz de resistir, em mais ou menos floreados verbais ou afins... Partindo do princípio que este flirt é só mental, pois a sua passagem ao carnal já nos levaria a entrar em outros domínios. Tratar-se ia de invocar os casanovas e os valmont deste mundo, numa abordagem a todas as ligações perigosas e mais alguma...

Mantenhamos a perspectiva discursiva, oral. Há pessoas que, claramente, gostam de flirtar. Fá-las sentir bem-dispostas, estimula a sua inteligência, permitindo-lhes conservar a liberdade que geralmente não conseguem dispensar. Podem até ser completamente fiéis ao amado, a um amado, fisicamente fiéis, mas há ali um prazer maroto, um jogo aparentemente mas quase sempre inofensivo, para além de uma lustradela ao ego de que não podem nem querem prescindir.

Por outro lado, a língua portuguesa contrapõe, com o verbo namorar. Um excelente professor inglês na universidade dizia que considerava esta palavra, também ela, única... Que os ingleses não a tinham, que só nós, os portugueses, para a termos, dizia, envolto em malícia inocente.

Namorar não será flirtar, é mais sério do que isso. O namoro implica um certo compromisso, uma certa dose de exclusividade que muitos gostam de cultivar e até de apregoar. Torna as coisas, o que quer que sejam, na verdade, oficiais... De repente, as pessoas tornam-se uma da outra. Terceiros estão a mais. As famílias fazem planos. Indica algum sucesso social. Prepara também, algum tipo de conhecimento do outro que pode levar (ou não) ao passo seguinte...

Mas namorar pode ser visto também como algo só absolutamente prazeirento, divertido e mesmo picante... Namorar às escondidas, por exemplo. Ou dar uma escapadela para namorar. O espírito exulta, algo atrevido, ao som destas expressões. O cinema, a literatura popular, a música, em muito têm contribuído para esta dimensão. A tela, sobretudo, tem feito sonhar os corações, fazendo-os bater mais depressa e lançando-os para inúmeras fantasias...

Recentemente o namorar tem vindo a adquirir contornos comerciais, também. Do kitsch dos peluches e dos cartões cor-de rosa, das flores às montras vermelhas por altura do S.Valentim, todos correm para lembrar o outro, não vá a cara-metade enfurecer-se por tamanho esquecimento. É vê-los de manhã bem cedo nas floristas ou a elas no dia anterior a comprarem pequenas lembranças supérfluas e de cores duvidosas...


Em jeito de conclusão, haverá certamente quem cultive o flirt e quem defenda o namoro. Ou quem, mais ousado e e criativo, consiga um espantoso equilíbrio entre os dois, divertindo-se (que mal haverá?) e amando (para valer?) ao mesmo tempo. De qualquer das formas, viva os afectos, as pessoas e, neste caso, o amor. Efectivamente.

abril 25, 2010

The Sound of Silence



Este foi o primeiro texto escrito para o jornal EPADRV...


The Sound of Silence

O silêncio. Que coisa mais fora de moda. Os jovens não o querem, as pessoas sentem-se mal com ele, aparece-nos como algo estranho, perturba-nos, ali está, a a fazer-nos confrontar connosco próprios e com os outros. O silêncio faz pensar. Ora isso é uma grande chatice. Dá trabalho, incomoda, exige capacidade de criar, enfim não estamos para isso. Então, fazemos o contrário. Fazemos barulho. Consumimos barulho. Nos locais, nas relações, nas aprendizagens, nos media, no entretenimento, no trabalho, nos tempos livres, e por aí fora.
Façamos um périplo por alguns sítios da nossa vida quotidiana. Entramos nas lojas de roupas dos centros comerciais, verdadeiras e queridas mecas do consumismo português, e os décibeis difundidos estoiram-nos os ouvidos. Não ousamos dizer isso porque gerações anteriores não nos habituaram a reclamar e além disso ainda passamos por velhos frente às mais novas que estão atrás do balcão. Onde está o responsável, o patrão? Até gostava de lhe dizer isto, que me incomoda estar a fazer compras no meio de uma música aos berros que me atordoa o espírito. Mas ele não está, delegou as responsabilidades em alguém que não precisa de pensar, apenas de executar, vendendo, e quanto mais presumivelmente bem disposto e alienado estiver, se calhar, melhor.
Depois seguimos para a loja de electrodomésticos. Queremos comprar um imaculado, branco e fresco frigorífico mas encontramos uma barulheira emanada quer de stereos quer de televisores ligados na ficha. Diga-se que estão 356 aparelhos a emitir ondas sonoras e que a proliferação de imagens ajudam à nossa confusão mental, já que a velocidade com que são disparadas acompanham o som, bem lá em cima. Olha, ela enganou-se na marca do frigorífico, não era este/a que queria, mas também, distraiu-se no meio da tecnologia de alta agitação, ah enganei-me, quer dizer, alta definição.
Depois entramos no carro para ir a outro lado e ligamos o rádio para ouvir música e acompanhar as notícias. Não encontramos nenhuma estação a passar melodia, quase todas estão a emitir... ruído. Metal, hip hop, electronic, tecno, house, trance, tudo o que lhe quiserem chamar. Esperamos pelas notícias… Começa uma voz a falar de acontecimentos locais e internacionais, mas olha, melhor, ouve… (se conseguires…) Tudo no meio de “música” (?) enervante que nem sequer deixa que sigamos o desenvolvimento das histórias. E pronto passaram a correr, ele não assimilou nada do que à partida podia, devia, queria. Depois lembra-se das notícias televisivas mas pelo sim pelo não ainda passa pelo quiosque para comprar o jornal. Ler ainda significa ausência de ruído…
Talvez sim talvez não. Os jovens de hoje, no geral, dizem gostar pouco de ler. E, quando já estamos a achar fantástico que o digam que o façam, descobrimos que lêem sim, o que quer que seja, ou estudam, mas de auscultadores nos ouvidos. Estar em silêncio é uma brutal seca, têm de estar distraídos, a consumir o que apenas às vezes alguns deles chamam de música, tem de haver uma espécie de divertimento non-stop. No quarto, nas aulas, na rua, há-de haver por perto um MP3 e um Ipod e um outro device qualquer para animar o pessoal. Então não se interioriza nem cultiva nada, nem afectos em casa nem matérias na escola. Na rua, passam apressados e escondidos atrás dos seus sons, sem sorrisos, sem espaço para olhar o mundo em redor…
Deslocamo-nos, então, ao cinema para respirar um pouco de romance e ficção. Já sonhamos com as histórias e suspiramos pelos protagonistas (não é afinal, também isso a magia do cinema?) mas antes ainda há tempo para sermos bombardeados com sons consideravelmente estridentes que não chamaria musicais, acompanhados de imagens em efeito turbilhão que nos violentam algum sossego no “escurinho do cinema” que afinal procuráramos... Os trailers são cada vez mais violentos, a publicidade é assustadoramente vertiginosa. Elas arrependeram-se de sair de casa, dir-se-á que envelheceram, não negam se isso significa desejar um pouco mais de calmaria...
Vivemos assim numa época em que parece que temos de estar constantemente animados e em perepétua agitação. Não há momentos para reflectir, trocar impressões, interiorizar conceitos, absorver valores.
Nos anos 60 do século passado a dupla Simon e Garfunkel cantava a música que dá título a esta crónica.
“…And in the naked light I sawten thousand people, maybe more.People talking without speaking,people hearing without listening…”
Ouvi-la e compreender o seu poema é, de facto, um convite a uma certa introspecção. Um convite a dizer não ao ruído por alguns ou muitos momentos e deixarmos construir dentro de nós uma lembrança, um projecto, uma ideia, um afecto...

abril 24, 2010

Madrigal


Hoje é o Dia Mundial do Livro. Na poesia, sempre gostei muito de Eugénio de Andrade...
Madrigal
Tu já tinhas um nome, e eu não sei
se eras fonte ou brisa ou mar ou flor.
Nos meus versos chamar-te-ei amor.

(...)
Eugénio de Andrade

abril 19, 2010

Orgulho e Preconceito, escrevia Austen



Nem de propósito. Na altura em que estreia o filme adaptado da obra da escritora inglesa, está em Lisboa uma actriz brasileira com uma curiosa peça em cartaz. Entretanto, disse a mesma numa entrevista que observou que os portugueses são muito preconceituosos (Lília, você é tão gira), que, para eles, ir ao psicanalista ou analista, é sinal de que se é maluco. Continuou, dizendo que, pelo contrário, no Brasil, é muito mais fora do normal não fazer psicanálise ou análise. Que todas as mulheres brasileiras modernas, com vidas carregadas de sonhos, expectativas, stress, dúvidas, angústias, e que mais, vão sem problemas ao divã. Dizem o que pensam, expressam o que sentem, relatam o que vivem, sem complexos de espécie alguma, dentro e à volta delas. Grande povo, sem dúvida, com tanta praia, habituados às ondas, não fazem onda com estas coisas, gente boa onda, não enrolam na areia, não enterram a cabeça na areia, o divã não é assim tanta areia.
Pois claro que, por cá, a coisa complica-se um pouco. O nome é psicólogo. Ou pior, psiquiatra. Trememos só de ouvir esta especialidade em medicina. Ou rimos dos desgraçados. Dos próprios que dão consultas e dos que vão às consultas. É gravíssimo entrar num consultório deste tipo. As pessoas estão, ou pior, são malucas mesmo, doidas à brava, loucas varridas. E dão-se fortes vassouradas a quem lá vai, varra-se essa gente da nossa companhia, a cabeça dessas pessoas não funciona. Tudo o resto pode não funcionar. O fígado, o baço, o pulmão, a articulação. Mas a cabeça não pode ter momentos mais fracos. Ou o coração, leia-se alma ou sentimentos. Ou a vida. Isto já é sinal de fraqueza, de incapacidade, de insanidade. E depois, que coisa tão estranha, falar de nós a um estranho. Estranha-se, então.
É óbvio que as pessoas menos egocêntricas, mas nem por isso mais perfeitas, já que tantas vezes estão demasiado viradas para a vida alheia, não compreendem que, no fundo, há algo de egocêntrico no doente do divã. O egocêntrico gosta de falar de si, não lhe custa nada partilhar as suas impressões e opiniões e emoções e situações com os demais. Daí que, como toda a gente sabe, as estrelas façam terapia facilmente. Conseguem passar horas a ouvir-se e a ouvir de si, há, pode dizer-se, uma quase vaidade no processo. Curiosamente, ao mostrarem-se vulneráveis, dançam de uma forma engraçada com o seu orgulho. Tanto acertam com o seu narcisismo como dão o braço, a torcer. E a mão, à palmatória. Assumem o que são, mostram-se como são, vão ao fundo de si mesmas. Auto-analisam-se e, desta forma, conhecem-se. Por outro lado, não querem ir ao fundo. No fundo, a estrela é um doente mais que... são.
Claro que não queremos bater no fundo. E procurar ajuda, se for esse o caso, é um acto inteligente e de maturidade. A burguesia dos costumes e a tacanhez das vistas não alcançam isto mas não faz mal. E depois, falar com alguém que não se conhece, que horror. Óptimo, digo eu. As melhores conversas podem acontecer num aeroporto, por exemplo. O desconhecido ao menos não nos cobra coisas que às vezes não podemos dar. O nosso psicanalista cobra dinheiro, pois, realmente não sai barato, mas curiosamente isso é bem mais fácil pagar. Obviamente que ter alguém a quem se paga para nos ouvir soa certamente mal a muitos mas também não faz mal. Fazer mal é parar no tempo. Mal é ser cruel ou ignorante. Mal é gozar com as fragilidades. É não ouvir nem entender Pink Floyd em “Comfortably Numb”. Pois eu cá, gosto demais desta psicadélica canção. Sei a letra de cor, ah pois sei. Mas pronto, eu sou um bocado para o egocêntrica. Portanto, se tivesse mais dinheiro ia no divã regularmente sem preconceitos e fazia terapia na boa. Ou análise, que em português do outro lado do Atlântico soa bem. Isso porque o Brasil descomplica e liberta enquanto que por estas bandas se complica e se aprisiona.
Lília Cabral, querida, traga a peça aqui, traga, para meu gáudio, sabe que eu sou uma mulher moderna, um pouco louca, pois então, e depois leve a mesma o mais possível por este país fora. Os portugueses, que engraçado, não vão no psicanalista e arrasam (com) quem vai, mas coitados, por baixo dos panos, ou à português daqui mesmo, debaixo do verniz, andam muito dêprê. Bem precisam de elevar a moral. E já agora de ter umas luzes sobre o assunto, que, no fundo, no fundo, vivem escondidos na escuridão. Por orgulho e preconceito, coisa antiga, século XIX, não abrem a cabeça nem o coração. Não querem, não sabem, não conseguem sentar no divã.

abril 18, 2010

InCultura(s) - Parte II



2. Dizia eu, então, há uma semana, que há em Portugal um profundo desinteresse pelo mundo ou de como a abertura ao mundo muitas vezes apregoada desde o tempo das descobertas é hoje praticamente nula. Sim, claro, nunca os portugueses viajaram tanto. Chega o Verão e as agências de viagens comprovam isso. Mas, como disse o actor Rogério Samora há alguns anos numa entrevista (partindo do princípio que essa revista reproduziu realmente palavras suas), “os portugueses não viajam, passam férias no estrangeiro”. Ora isto é completamente diferente.
Viajar significa observar, conhecer, envolver-se, adaptar-se, enriquecer-se, transformar-se até. Significa mergulhar e submergir os sentidos de forma intensa num outro mar que não o nosso. Para falar francamente parece-me que a maior parte de nós é o chamado turista de hotel, que só espera facilidades e comodidades e que não está disposto a correr riscos e a aventurar-se no desconhecido para absorver um conhecimento maior e mais real da realidade de qualquer que seja o local ou país dos cinco continentes. Aliás, ainda mais francamente, por aquilo que se observa, a maior parte das pessoas que vai para o estrangeiro, passar férias, pois claro, fá-lo quase sempre cheia de um incompreensível medo, frequentemente acompanhada de preconceitos e muitas vezes até com uma certa arrogância cultural.
Vou ser honesta. Claro que é impossível não sentir nunca toques de etnocentrismo quando somos postos perante tradições ou práticas a que não estamos habituados e sobretudo perante rituais ou esquemas sociais que a nós nos parecem estranhos (mas não definamos estranho, aqui, tal questão levar-nos-ia muito longe...). Começamos logo a comparar e achamos ou tudo muito primitivo ou tudo muito pitoresco ou tudo muito cruel ou tudo muito exótico. Não fugirei totalmente à regra...
A propósito do caso Maddie, houve uma quantidade de gente altamente incomodada pela forma como, diziam, os ingleses viam Portugal – um país exótico a lembrar Marrocos, onde nada funciona e cheio de incompetentes. Parece-me que se esquecem, esqueceram momentaneamente, que esse comportamento temo-lo nós em Marrocos precisamente e no Norte de África e na América Latina e na Ásia e no Médio Oriente e no oriente menos próximo (o que será que se diz no Dubai, confesso a minha curiosidade) ou seja em muitos lados que não estejam no mapa europeu, sobretudo europeu ocidental. Nós também achamos que somos muito melhores que esses povos. Olha, às vezes somos. Quer dizer, há coisas que temos e fazemos melhor. E outras, pior. É a vida.
Invariavelmente há bom e mau em todo o lado e é isso que importa saber. Celebremos realisticamente o que temos de bom e aprendamos humildemente o que os outros também têm. Registemos no nosso diário de bordo, não apenas que o hotel era fraco ou que a comida não era boa, mas, e sobretudo, as enriquecedoras experiências que estar em contacto com as diferentes culturas sempre nos acabam por trazer. Sejamos pois receptivos e ousados nas maravilhosas ou perigosas e surpreendentes ou decepcionantes viagens por esse incrível mundo.

InCultura(s) - Parte I



Não sabemos nada da Bolívia. Alguns sabem que a capital é La Paz ou que foi lá que morreu o Che. Pouco ou nada sabemos da Mongólia. Outros terão ouvido falar do deserto de Gobi e saberão que a sua capital se chama Ulan Bator. O que sabemos da Namíbia, do Chade? Que ficam em África e que têm decerto uma capital cujo nome não lembramos ou nunca soubemos. E por aí fora. Literalmente: fora. Ou longe. Portugal, na minha opinião, está virado para dentro, fechado, vistas curtas, provincianismo. De facto, num mundo que se pretende cada vez mais globalizado, é um facto que a nossa incultura do mundo se torna cada vez maior e mais evidente. Comecemos, então.
1. Não falemos aqui das pessoas bem informadas, sedentas de saber, ávidas de conhecimentos. Essas facilmente procuram e encontram respostas para as suas curiosidades, de várias maneiras, a diferentes ritmos. Geralmente gostam do mundo e tentam conhecê-lo. Dissertemos um pouco, sim, sobre o grosso da população portuguesa, mesmo sobre as massas. Sobre os nossos familiares, os nossos vizinhos, os nossos alunos, os nossos colegas.
A maior parte dos portugueses não deve (nem tem de) possuir tv cabo. Não vê o Travel ou o Canal História ou o Odisseia. Não tem, deste modo, acesso a programas que nos levem para outras paragens que não sejam a esquina ou o quintal do vizinho ou então o Brasil ou os Estados Unidos. Telenovelas ou séries frenéticas e psicóticas, ou ainda notícias de faca e alguidar são o prato que nos servem ao serão, dia após dia, melhor, noite após noite, piorando um pouco mais no verão, época em que a televisão ainda se demite mais de (nos fazer) pensar (ou sonhar, ainda podemos?).
Falar da televisão (portuguesa) aqui não é ingénuo nem acidental. Continua a ser o mais poderoso meio de comunicação social, tendo a capacidade de elevar e engrandecer uma geração ou de a afundar e empobrecer culturalmente. Não mostrar o mundo, com as suas maravilhas e misérias, mas também mostrar as suas geografias, a(s) sua(s) história(s), as suas etnias, os seus monumentos, as suas tradições e também as suas modernidades, é uma falha colossal no que diz respeito à formação de cidadãos do mundo, precisamente. Pode aqui defender-se a ideia de que as pessoas podem procurar o que ver. Contudo, na minha opinião, a cultura das culturas do planeta, ou seja, o gosto pelo conhecimento do mundo em que vivemos não deve ser elitista, apanágio daqueles que podem e/ou sabem informar-se mas sim mainstream e chegar às massas, educando-as e edificando-as. Essa cultura deve entrar pela porta dentro sem pedir licença, assim como um raio de sol que nos ilumina e aquece e que não pede, obviamente, autorização. E quem não fica mais feliz com um raio de sol? I wonder...
Chega a ser quer hilariante quer revoltante o desconhecimento dos alunos nestas matérias, a colocarem, por exemplo, Paris nos Estados Unidos e a Grécia na África do Sul, e isto só para falar de incultura geográfica. Mas numa televisão que cultiva as séries de adolescentes acéfalos a desfilar em bikini e que não precisam de se esforçar para nada, acaba por se compreender este alheamento e desinteresse pelo que roda para além do umbigo e da boa vida.(Continua...)

abril 17, 2010

LatinAmerica


Nas férias do Carnaval, e de uma assentada, fiz uma espantosa incursão pela América Latina. De uma assentada, disse, dois filmes a mostrarem histórias e pessoas. De uma assentada, já disse, duas figuras da cultura mundial a revelarem-se mais. Ernesto “Che” Guevara e Frida Kahlo. A revolução. A juventude idealista do primeiro. A arte. O feminismo atrevido da segunda. E também nela o idealismo. E também nela a revolução.
N”Os Diários de Che Guevara”, cujo nome original remete para a motocicleta, viajamos de forma ora trepidante ora ternurenta. Aventura a toda a prova, seguimos o trajecto de um Ernesto ainda jovem, por cidades e paisagens sul-americanas. Deslumbramo-nos com a imensidão dos espaços, sentimos a aridez de locais e de vidas, vibramos com a música ritmada e envolvente que nos arrasta por quase todo um continente.
Em “Frida”, é uma vida que se desvenda devido à imortalidade que a grande pintura permite. Aqui, acompanhamos o trajecto desta mulher num México colorido e fervilhante, mas também intelectual e cheio de fervor revolucionário. Aliás, não é por acaso que Diego Rivera pinta murais de inspiração marxista e não é por acaso que Leon Trotski se aí refugia, acabando depois por encontrar a morte.
Voltemos a Che. Este herói romântico que ficou na memória colectiva de muitos povos em busca da independência e na individual de muitos sonhadores de esquerda, surge aqui, e talvez curiosa e inesperadamente, caracterizado por uma franqueza às vezes demasiado desprovida de sentimento, demasiado fria. Nasceu em meados de Junho. Muitas vezes o olhar era distante, pensativo, a expressão carregada de idealismo etéreo. Dono de um inegável fascínio, sem dúvida. Mas a sua verdade era também nua e crua demais, quase clínica, talvez também como marca natural de alguém que estuda(va) medicina sem ser na área do estudo da psique. Assim sendo, “Os Diários” foram interessantes também, para mim, enquanto pequeno estudo da personalidade, até porque havia um paralelo a fazer com o seu amigo, e companheiro da aventura, Alberto Granado, também a estudar para médico, e em cujos livros o filme também se baseia. Este homem, que nasceu nos princípios de Agosto, era de facto bem mais egocêntrico e teatral do que Che. Estamos perante alguém que escondia a verdade, o que soará para muitos a falso, mas se atentarmos um pouco melhor, vemos que a escondia essencialmente para não magoar os outros, para não os assustar, fantasiando a realidade como reflexo de um coração mais generoso e afectivo... Leal a Che toda a vida, seguiria-o até Cuba onde, de resto, ainda vive e dirige uma importante clínica. Contudo, ou não, penso que a viagem de moto foi crucial para um Che que haveria de apaixonar aqueles que queriam e querem mudar o mundo. Creio que o contacto com as pessoas em sofrimento, quer físico quer social, o humanizou muito mais e que não voltaria a ser e que não foi mais o mesmo.
Voltando a Kahlo, ao visualizar a sua biografia no écrã, toda ela envolta numa fotografia quer plena de cor quer plena de fantasia que em muito se inspira nas telas da própria artista, vemos alguém com evidentes marcas de sofrimento, muito físico e algum psicológico. A sua vida está aqui praticamente toda retratada, por oposição ao filme sobre Ernesto Guevara. Há aqui e acolá um toque erótico, ou não tivesse Frida nascido em Julho, assim como uma pincelada de sentimentos indefinidos (a sua própria sexualidade revelava uma certa ambiguidade) e de confusão interior... De qualquer forma, é verdade que Frida nos toca e nos comove e nos desconcerta e arrebata e, sim, claro, como deve ter escandalizado formas de pensamento mais organizado e ou mais retrógado. Criativa e arrojada, doida e apaixonada, mas também resistente, suportando dor(es) e caminhando para a perenidade. Os seus quadros, pois, eternizam-se na nossa mente, no espólio cultural de cada um de nós, enriquecendo-o. As suas relações com Rivera e com Trotsky, entretanto, alargam o nosso conhecimento da história e a visão transversal que não podemos deixar nunca de ter da mesma. E depois, tal como no percurso de moto, o ritmo da música de sons hispânicos a acompanhar-nos, a fazer-nos sentir uma nostalgia estranha de algo que não vivemos e de lugares que não conhecemos.
Há nestes dois filmes, uma sensação de grande liberdade, de absoluta e infinita liberdade. Há também, inequivocamente para mim, um forte apelo à e um brutal gosto pela revolução. Revolução política, social, artística, humanista. Há também uma paixão, pela aventura e pela arte, um estudo também, da amizade e do amor. Ou dos amores, que podem ser a arte e a aventura, a geografia e a pintura. E, sempre, sempre, as pessoas, as suas histórias, os seus defeitos, figuras falíveis, porque humanas, tornadas mitos, os dramas, os humores, o humor, as contradições dos indivíduos e a criação, a causa, o sonho, a imortalidade.
Estes dois filmes vistos de uma assentada são também um inegável convite a viajar livres por um continente, lá, e um verdadeiro desafio a viver livres num outro, cá. Esquecendo-nos dos índices da bolsa e do telemóvel, da crise e do trânsito, das tarefas domésticas e dos deveres profissionais, dos almoços de família ao domingo que não nos apetecem e das compras no supermercado que também não nos apetecem, viajemos e vivamos pois no limbo que é o inesperado. Pelo menos durante quase cinco horas foi possível. Projectarmo-nos numa outra dimensão. Existirmos de uma outra forma. Dios, o que dois DVDs podem fazer. De repente, apeteceu-me ouvir os Jáfumega. Aliás, mais. Com a chegada das férias de verão, com a vida a pedir mais calor e mais ar, apetecia-me mesmo era apanhar o avião e rumar aos sons quentes da LatinAmérica...

Atempadamente,




Em inglês existe uma palavra para o tempo atmosférico e outra para o tempo cronológico. Não me lembro de na cultura popular anglo-saxónica haver referências directas à primeira, weather. Pelo contrário, vêm à memória inúmeras em relação à segunda. Na música, desde o clássico As Time Goes By, passando pelo psicadélico Time (dos Pink Floyd), chegando até ao pop Time After Time. E assim também na literatura, no cinema. Provavelmente todos os artistas se debruçaram sobre a noção ou o conceito de tempo. Certamente porque a arte é uma inequívoca expressão da realidade, da vida. E o tempo uma das mais constantes e porventura inquietantes componentes da existência.
Vivemos no tempo, usamos o tempo, contamos o tempo, ganhamos tempo, perdemos tempo, queremos travar ou acelerar o tempo, queremos tempo, queremos eternizarmo-nos no tempo. É absolutamente incrível como o sentimos, como o pensamos. E mais incrível ainda como o tempo nos envolve e nos domina, nos aprisiona mas também como nos pode libertar, dependendo do tempo que é, do que dele fazemos. E podíamos estar aqui horas a jogar com as palavras e com a dimensão imensa que o tempo constitui. Horas, dias. Muito tempo mesmo.
Aqui há algum tempo, estava a ler a crónica do director de um conhecido semanário e deparei-me com uma frase que captou a minha atenção durante algum tempo. Dizia ele, basicamente, que há pessoas que estão sempre sem tempo, sempre cheias de pressa e que dão a impressão de estarem permanentemente ocupadas. Daí que, concordando, passe agora eu também a um lado menos filosófico e claramente mais prático da questão.
É alucinante, de facto, o ritmo a que se vive em quotidianos impregnados de modernidade. Por uma questão de qualidade de vida, de equilíbrio emocional e até de felicidade pessoal era desejável que conseguíssemos dias mais tranquilos e onde não sentíssemos tanto a pressão do tempo. Claro que isto se tem tornado cada vez mais difícil de obter para todos nós – o emprego, a família, o trânsito, as contas, a crise, o (in)sucesso, até o lazer. Conciliar, gerir e organizar todas estas áreas ao mesmo tempo pode mesmo dar cabo do nosso tempo. De qualquer forma, e retomando a ideia do director cronista, há sem dúvida pessoas que estão sempre a queixar-se da falta de tempo. Não há tempo para fazer uma visita, para mandar um já de si mais rápido e-mail, para telefonar nem para enviar uma sms. E assim passam aniversários, casamentos, nascimentos, doenças, desilusões, divórcios inclusivamente. Culpa-se assim o tempo e assim passa o tempo. (Recorde-se aqui o algo quieto e maravilhoso Os Despojos do Dia de James Ivory, exemplo claro e para mim inesquecível de como as coisas não ditas a tempo podem perder-se irremediavelmente no tempo.)
E as pessoas ocupadas? Bem, as pessoas sempre cheias de pressa porque fazem muita coisa às vezes parecem dizer-nos que somos uns inúteis sem uma vida preenchida e, desta forma, infelizes. Há muitas vezes a ideia de que preguiçar é absolutamente antiquado, errado, pecaminoso. Então as pessoas correm muito, estão sempre a dizer que foram aqui e que agora vão ali, e que já fizeram e vão fazer a seguir milhentas coisas, anunciando intenções, descrevendo acções que a nós pouco nos importam, dando a ideia de que produzem muito muito. No trabalho, nomeadamente, isto é para lá de irritante. E ainda por cima é errado. Este muito muito às vezes é completamente infeliz. Qualidade zero, criatividade abaixo de zero.
Falando em zero, acabo de olhar para o relógio e vejo um zero indicando que já passa da meia-noite. É o tempo a dizer que o meu corpo e mente pedem preguiça. É tempo de terminar. Por hoje.

O Frio do Nosso Descontentamento


1. Absolutamente e, por vezes, brutalmente real, a verdade é que o frio também faz parte do imaginário colectivo universal. Nas sociedades ditas ocidentais, por exemplo, a sua alusão na cultura popular tem sido deveras constante. Desde os nórdicos postais de natal, preenchidos com cenários de neve que muito fizeram as nossas fantasias da quadra, até à literatura e ao cinema (vejam-se livros como O Espião que Veio do Frio, de John LeCarré, e filmes como Cold Mountain, de Anthony Minghella), sem esquecer a música com inúmeras composições a destacarem quer a palavra quer o conceito logo a partir dos seus títulos (Cold as Ice, Foreigner, Baby It´s Cold Outside, Ray Charles, Cold, Tears for Fears, I´ts Cold Outside your Heart, The Moody Blues, e muitas outras). E não esqueçamos a visão romântica que a sua estação também a muitos proporciona. O crepitar da lareira, o prazer renovado da leitura, o aconchego da lãs, as bebidas quentes, os serões familiares, a conversa mais intimista...
Muitas vezes severo e dizimador, o frio tem jogado a sua quota parte de importância também no decurso da história. Dois quase invencíveis exércitos por causa dele sucumbiram, com a Rússia a clamar para si vitórias sobre as tropas de Napoleão e, mais tarde, de Hitler (general inverno apresenta-se!). Prova de que a natureza é avassaladora e poderosa, com os rigores do inverno a terem efeitos na moral, alma e corpo de milhões de pessoas. Mais recentemente, o conceito de Guerra Fria foi expressão dos antagonismos sociais e políticos entre os Estados Unidos (e aliados) e o bloco soviético até ao desmonoramento deste.
2. A noção de/do frio está presente para além das dimensões geográficas e climáticas. Também a encontramos na vertente psicológica, ajudando a destrinçar traços de personalidade. Os povos de expressão inglesa distinguem claramente a palavra cool ( e não cold) da hot-tempered para descrever as pessoas e as suas atitudes e reacções. Têm até uma expressão idiomática engraçada para atribuir aos carácteres que dominam mais as emoções, ou melhor, paixões: as cool as a cucumber. De facto há seres humanos que têm claramente a capacidade de se manterem algo fleugmáticos perante inúmeras questões, por oposição aos indivíduos mais explosivos e vulcânicos. Mantêm, pois, a cabeça fria. O ideal de reacção, o domínio da mente, o oposto da impulsividade. Tal como no tempo fresco (cool morning, cool breeze), as situações são vividas com maior suavidade.
Para além da língua inglesa, também na portuguesa, e porque as palavras transmitem ideias, encontramos várias expressões que nos remetem para a significância do conceito “frio”. Realizou tudo a sangue-frio (indicando extremo auto-controlo). Senti-me gelada (medo, desconforto emocional). Sentiu um frio na barriga (nervosismo). E outras do género.
3. Mas desenvolvamos a ideia de frieza associada à natureza das pessoas. Como definir um indivíduo frio? Dizer que ele é ”cold-hearted” ( de coração frio) à partida descreve alguém como sendo duro, com dificuldades em sentir compaixão. Parece haver aqui uma ligeira diferença entre dizer que ele é “cold”, curiosamente. As pessoas verdadeiramente frias serão aquelas em que há ausência de paixão, de sentimento, em última instância, de afectividade. Trata-se de uma noção bem mais subtil. Assim parece, realmente. Há pessoas simpáticas (leia-se o contrário de sisudas), comunicativas e aparentemente muito dadas que na verdade revelam, talvez inesperadamente, uma grande falta de calor. Os afectos são dificeis de desenvolver, manter, prevalecer. Há claramente uma sobreposição do mental sobre o coração. Por vezes há nelas uma franqueza desprovida de qualquer inteligência emocional, as palavras incomodam e mesmo ferem, ainda que ditas no meio de sorrisos, e elas não se apercebem ou não querem saber do impacto das mesmas. Não estejamos com meias palavras - não nos aquecem, pura e simplesmente.
Há, por outro lado, uma grande dose de superficialidade nesses indivíduos. Superficial quer dizer não ir profundo, não sentir até ao amâgo, não entusiasmar-se muito mas também, e consequentemente, não sofrer muito. Conseguem desta forma sobreviver a questões que seriam mais problemáticas para pessoas mais sentimentais e com maior insight psicológico. Sem picos de emoção, a dor atenua-se sobremaneira, dir-se-ia.
4. Quanto à frieza, efectivamente, trata-se apenas de uma característica. Talvez muitos de nós ou mesmo todos tenhamos uma faceta assim. Ela é o expoente máximo do nosso lado mais racional, que trava muitas das nossas acções, más e também boas. Mas provavelmente por esta última consequência, e tendo em conta o frio de rachar de Janeiro, aqui fica a sugestão: aqueçamo-nos com o fogo de uma lareira e de um afecto. O frio tolera-se em doses q.b. Ondas de calor são bem vindas, já que as palavras sairão também elas mais calorosas e o coração, nosso e dos outros, sentir-se-á mais reconfortado e mesmo feliz...