março 30, 2013

O cavalheiro de ferro

Photo: Na véspera de não partir nunca 

Álvaro de Campos

Na véspera de não partir nunca 
Ao menos não há que arrumar malas 
Nem que fazer planos em papel 
Com acompanhamento involuntário de esquecimentos, 
Para o partir ainda livre do dia seguinte. 
Não há que fazer nada 
Na véspera de não partir nunca. 
Grande sossego de já não haver sequer de que ter sossego! 
Grande tranquilidade a que nem sabe encolher ombros 
Por isto tudo, ter pensado o tudo 
É o ter chegado deliberadamente a nada. 
Grande alegria de não ter precisão de ser alegre, 
Como uma oportunidade virada do avesso. 
Há quantas vezes vivo 
A vida vegetativa do pensamento!
Todos os dias sine linea 
Sossego, sim, sossego... 
Grande tranquilidade... 
Que repouso, depois de tantas viagens, físicas e psíquicas! 
Que prazer olhar para as malas fitando como para nada! 
Dormita, alma, dormita! 
Aproveita, dormita! 
Dormita! 
É pouco o tempo que tens! Dormita! 
É a véspera de não partir nunca!

Ouvi e vi Jeremy Irons hoje na televisão, numa breve entrevista dada a propósito do filme "Night Train to Lisbon", dizer que viveu muitos anos na Irlanda e que os problemas de lá são os mesmos de cá, graves e profundos, ou adjetivos do género. E disse ainda que temos ("we have") vivido acima das nossas possibilidades desde há 20 anos a esta parte e que aqui está o resultado desse capitalismo desenfreado.
Agora é que são elas. Como reagir? Serena e lucidamente, porque é uma verdade (já lá vamos) ou atirar-nos indignadamente contra o ator? Afinal, foi o mesmo que a Jonet disse há uns tempos atrás e viu-se a onda de protestos que correu o país. Nada me leva a defender Isabel Jonet, nem lhe conhecia a cor nem as origens e mesmo conhecendo um pouco mais é-me perfeitamente igual. Não fui na onda coletiva de achar que me estava a ofender, não vi a questão dos bifes senão como uma metáfora, não me melindro ouvir dizer que, nesta altura, há prioridades em detrimento de outras, nomeadamente concertos para trás para adquirir manuais escolares. Se gosto do que isso significa? Não. Se me sinto bem por andar para trás e ganhar apenas para pagar contas e ver muitas expetativas defraudadas? Não. Se sou indiferente ao desespero de quem já pouco ou nada tem porque já não é de viver mas de sobreviver de que se trata? Não. Porque esta crise não é mais do que um retrocesso, um retrocesso a vários níveis e qualquer retrocesso quando já havia registado avanços e ganhos é sempre uma derrota. Uma derrota de um estilo de vida que já havíamos alcançado ( e lutado por alcançar). E sobretudo uma derrota na dignidade quando já se está ao mero nível da sobrevivência. Mas esse facto não invalida que Irons também não tenha razão. Alguém duvida que o capitalismo selvagem em que as nossas sociedades ocidentais se movem não é responsável por este estado de coisas? Alguém duvida que o consumismo sem regras nem limites tem tido o mesmo efeito? Alguém duvida que o sistema financeiro e a supremacia das multinacionais e afins tem criado os problemas que existem? Ou parte deles? Parte deles, pois com competência e honestidade as coisas poderiam ter sido bem atenuadas ou mais facilmente ultrapassáveis. Também é uma verdade. Ou devia ser.
Não percebo de economia, nadinha, nem de política, a bem dizer. Mas não podemos negar, creio, a enorme responsabilidade do capital, do consumo, conjugados com irresponsabilidades estatais e políticas e, atrevo-me a dizer, que com algumas das próprias sociedades, ao compactuarmos com estilos de vida que estão focados no ter e ostentar, sem real capacidade financeira para isso, muitas vezes. Deixaram-nos acreditar que as posses eram reais e não eram. Mas sobre a loucura do consumismo e das suas consequências mais nefastas não vou dissertar aqui hoje.
Falava do Irons. Será que lhe vão perdoar? Perceberão que é uma crítica a um certo tipo de trituradora  sociedade que nem toda a gente defende?  Ou vão deixar de ver os filmes do ator por causa do que disse? Será ele um insensível? Feito mesmo de ferro? Ora, ora, e muitos a pensarem que ele era (apenas) um cavalheiro.

4 comentários:

  1. O Jeremy "Iron " e a Isabel "Honey" disseram a mesma coisa?...

    Bom Domingo
    Abraço

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    1. Ah pois disseram, amigo jrd. Ipsis verbis, praticamente. :)
      Obrigada, espero que tenha tido também um bom dia. Doce, de preferência, já que fala em "mel" :)

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  2. Quem o conhece, sabe que ele é muito mais do que um "gentleman". ;) Marla

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