março 26, 2013

Perguntas retóricas

  
                                  

De vez em quando há assim umas quebras, que em mim coincidem quase sempre com períodos em que estou mais cansada ou até adoentada. Nessas alturas, para-se obrigatoriamente e muita da correria que impomos a nós mesmos deixa de fazer sentido, ou pelo menos, o sentido que lhe damos quando estamos bem e corremos.
Não porque desacredito subitamente daquilo que faço e me fazem fazer e aceito e gosto de fazer. Mas porque, caramba, cada vez somos mais maltratados, e falo dos profissionais onde me insiro, e não abrandamos o ritmo e diminuímos o esforço. Vejamos. Direitos adquiridos que já foram, cortes sistemáticos nos salários, congelamentos na progressão da carreira, privações de subsídios, para além de sermos atolados com exigências crescentes de sucesso, de burocracia, de tempo. Porque continuamos a trabalhar intensamente, a chegar, por vezes, ao limite da dedicação e do esforço é algo que ainda ocupa o meu rol de inquietações.
Se por um lado, não podemos baixar os braços e deixar de continuar a produzir, e bem, até porque trabalhamos em prol dos alunos e do saber (ou devíamos), por outro, revelamos uma total incapacidade de resistência e luta contra o sistema e as ideias governativas que têm assaltado as escolas desde há anos e anos. Até porque também sem professores não haverá escola. Por muito que se apregoe do lado de fora saber o que é o ensino poucos lhe resistiriam quando mergulhados nessa realidade, se de facto com ela vivessem como quem está dentro. Mas avançava eu com a ideia de que a resistência por parte dos profissionais do ensino não existe. Pois não. Pois não são as manifestações de um dia ou outro que significam resistir e não compactuar com o que de mal tem vindo a ser feito. Por mim, não são. Cada vez menos me apetece ir a uma, onde não consigo soltar palavras de ordem que depois vão de total encontro àquilo que vejo fazer-se. Que adianta uma manifestação em que se pedem explicações ou demissões quando depois na prática, no dia a dia, somos cordeirinhos de carga, que fazemos o que nos pedem - melhor, que fazemos até o que não nos pedem? 
Gosto, zelo, brio, cooperação, amizade, respeito, criatividade, missão, assim vamos tecendo os dias feitos destes e doutros afetos e qualidades. Ou até de defeitos... não entrando por aí, para já. E avaliação de professores, claro, um visionário e inteligente distrator que nos vai arrastando a todos. Pelas mesmas coisas que indiquei há pouco, de resto. E assim despendemos as energias, chegando estoirados aos finais de período, num cansaço que é bom dizer quando é pessoano mas que muitos ainda teimam em esconder ou desvalorizar quando é pessoal. Ou só confessam baixinho. Porque fazemos tanta coisa? Ou ainda, para que é que fazemos tanta coisa? Para quê, insisto.  Não estou a falar das aulas, de longe, elas são o essencial e aquilo que não devíamos descurar nunca, mas de outras dimensões. Para quê, pergunto. Onde fica a vida familiar, e mesmo social, no meio disto tudo? Tentamos compensar nas apertadas interrupções letivas? E o resto dos dias? Os nossos filhos, os que amamos? Para quando tempo e energia para eles?
Bom, suponho que o mesmo se possa dizer de outras profissões, se não de todas, dependendo da forma como são encaradas e vividas. É bom sentir que somos úteis, válidos, necessários, apreciados, certo. Mas quem nos dirige os destinos lá nos gabinetes não nos aprecia nem nos trata como tal. Ora isso é que me continua a fazer espécie em dias não ativos, quando há tempo para pensar e às vezes não há a energia habitual para dar. Ou sequer a vontade. Porque e para quê nos estafamos desta forma hoje em dia, apeteceu-me hoje perguntar em voz alta. E sei que há quem pergunte o mesmo. Era bom era que passasse das perguntas retóricas. Isso é que era uma manifestação.

10 comentários:

  1. Sinto o mesmo... apesar de AINDA amar estar numa sala de aula... todo o resto me ENOJA.

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    1. Pois, Rosa, isto não está fácil... A palavra que mais oiço dizer na(s) escola(s) é esta: "farta".

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  2. Acção precisa-se!
    Abraço

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    1. Pois, também acho mas não é com dias de parada coletiva e faixas negras a dizerem luto. Percebe o que quero dizer, jrd? Continuamos a fazer igual ou ainda mais quando, na verdade, devíamos estar a protestar. De outra forma, não compactuando com as coisas de uma outra forma.
      Outro *

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Leio o seu texto, Fátima, e fico impressionada. Porque ele é um importante testemunho do cansaço e desalento que vejo e sinto em tantos professores que conheço, e que eu também sou, apesar de estar há três anos um pouco mais longe da escola e das salas de aula.
    E, de facto, nunca como agora é preciso viver as coisas do lado de dentro para se sentir a real dimensão dos problemas que afectam o ensino e minam o clima das escolas.
    Esta é uma matéria, mais do que qualquer outra, sobre a qual toda a gente gosta de opinar. Mas é como diz: "poucos lhe resistiriam quando mergulhados nessa realidade, se de facto com ela vivessem como quem está dentro". Porque quem está de fora não faz a mínima ideia do desgaste que é, hoje, enfrentar de hora a hora salas de aula abarrotadas de todos os problemas que a sociedade não é capaz de resolver, exigindo à escola e aos professores que o façam.
    Também é verdade, por outro lado, o que diz, no sentido em que os professores também são muitas vezes vítimas deles próprios, quando se acham imbuídos de um "espírito de missão" mais do que considerar-se como profissionais da educação, o que os leva a ser tantas vezes "cordeirinhos de carga, que fazemos o que nos pedem - melhor, que fazemos até o que não nos pedem", sem se questionar, sem pensar, sem espírito crítico.
    Gostava que todos os professores pudessem passar por uma experiência como esta que me tem sido dado viver e que consiste em passar para o "outro lado", ganhar distanciamento, ter uma perspectiva mais abrangente do que se passa nas escolas e na educação e depois ter vontade de regressar ao lugar a que, no fundo, se pertence. Para mim, tem sido uma espécie de período sabático, de reflexão e de retempero de energias.
    Mas sei muito bem o que é a escola, sei-o até, agora, melhor ainda. E apesar de todos sabermos que há professores que não o deviam ser e que nos envergonham tantas vezes, eu estou sempre ao lado dos professores, porque nunca me esqueço que é isso, essencialmente, que eu também sou.
    Muita força, muita calma, Faty, e um beijinho muito amigo
    Isabel

    (Removi a comentário anterior que, escrito à pressa, estava carregadinho de gralhas ;)

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    1. Na verdade, trata-se de uma análise fria, desmontando o circo de exigências tolas e constantes que nos tiram qualidade de vida e tempo para os nossos. Por culpa de quem manda e de quem se deixa mandar, por todas as razões que apontei e mais algumas. Eu também sou das que correm, ou vão correndo, por causa de um lado que tenho, bom ou mau, não interessa. Mas também tenho este, o de olhar como se estivesse de fora e ver que tudo (o ritmo, o esforço inglório, muitas vezes, a feira de vaidades e outras) não faz sentido quando nos tira tempo e energia a mais. E sobretudo quando devíamos estar a protestar com ações concretas no dia a dia. Desculpe, Isabelinha, mas não tem nada a ver com força, calma e coisas que tais. Não nos falta isso. Tem a ver com aquilo que está, pelo menos quando se para para pensar. :)

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    2. A calma e a força, que eu sei que não faltam, não são permanentes e há, certamente, momentos em que faltam, sim, porque é humano... Essa minha referência era um gesto solidário, mais que outra coisa qualquer.
      No fundo, acho que estamos de acordo no essencial.

      Boa Páscoa! Beijinho Fatinha :)

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  5. Muito boa reflexão! O cansaço, o desgaste e a falta de reconhecimento desanima-nos e afeta o nosso bem-estar físico e psicológico. Infelizmente, a nossa classe é e sempre foi desunida. Apesar de todos partilharmos os mesmos males, não nos unimos nas questões essenciais e não batalhamos para mudar... As manifestações são importantes, mas deixam o trabalho de luta/ mudança muito incompleto. O seu resultado tem sido pouco visível e seria necessário outras atitudes no terreno, tais como não comparência a vigilâncias de exames nacionais. Marla

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    1. Obrigada, Marla. Eu frequentemente ponho-me na posição de observadora e acho que há muitas coisas que provavelmente não deveríamos estar a fazer da forma que as fazemos, sejam lá quais forem as razões. Mas teria de ser conjuntamente, sim. Por várias razões, claro.

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