julho 12, 2011

O bilionário

É extraordinário o poder do (bom) cinema. As viagens que permite, o conhecimento que se tira, as reflexões que inspira. Ainda ontem pude fazer tudo isto ao mesmo tempo. quando finalmente vi Slumdog Millionaire. Não sendo um filme propriamente arrebatador ou soberbo, não deixa de ser extraordinariamente marcante, pela narrativa em inocente flashback, pelos cenários de miséria humana e física, e mesmo pela banda sonora, à la Bollywood. Mas aquilo que me leva a escrever são de facto as lições, ou seja, as conclusões que invariavelmente se tirarão da sua história invulgar, se bem que nem sempre imprevisível.
A primeira é a noção de conhecimento. O que é o conhecimento? Quem o detem? Será ele apanágio de alguns? É dado pelos livros e pela educação? Ou pode alguém sem instrução deter o saber pela sua incrível história de vida? Se a isso, ainda por cima, aliar memórias de dor ou de uma dura existência que soube ultrapassar? A forma como Jamal consegue responder às perguntas do concurso mais popular de sempre é fruto de um percurso de vida feito de encruzilhadas e desencontros, de experiências marcadas pela violência e pelo desafecto, e nunca de uma salutar aprendizagem própria de uma criança feliz e enquadrada familiar e socialmente.  Daí que ninguém acredite na sua inusitada sabedoria. O puto dos bairros de lata a catalizar os sonhos de uma Índia miserável - fantástica alegoria. E fantástica redenção.
Mas outra grande conclusão é que, apesar de tudo, Jamal foi e é realmente saudável na sua alma e carácter e que essa bondade e generosidade que dá à vida e aos outros vão ser recompensadas mais tarde. Exactamente o contrário da personalidade e fim do seu irmão, Salim. Apesar dos ocasionais laivos de consciência deste, particularmente em relação aos desesperos de Jamal, a verdade é que escolheu desde sempre uma vida errante, feita de jogadas, de esquemas falhados, de violência, de morte. Aquilo que deu, colheu - perfeitamente sintomática a cena em que é assassinado na banheira estando coberto não de água (a transparência, a limpidez) mas de notas (a ambição, o falso poder). De qualquer forma, ele terá aberto o caminho para a felicidade do irmão - eliminando os algozes e "libertando" Latika. Terão os maus também coração? Ou a sua maldade foi apenas resultado da miséria e da sua desesperada incapacidade de fazer as escolhas certas?
Outro aspecto inerente à estranha beleza do filme é a recorrente dimensão da perda da inocência num mundo que não contempla o crescimento harmonioso de crianças e adolescentes. A inocência dificilmente consegue prevalecer quando se trava uma luta árdua e desigual pela sobrevivência. E como sempre acontece, há momentos de choque nesse processo. Queremos mudar as coisas, desejamos que não fossem assim, pensa-se nos nossos filhos e, por contraste, no dilacerante desabrigo daqueles miúdos. Mas ao mesmo tempo, também, prova-se que a doçura e pureza da alma se podem conservar - Jamal consegue-o e é tocante que o faça no meio de tanta dificuldade.
Há ainda a questão da inveja que o sucesso de alguém simples desperta. O vaidoso apresentador de televisão pretende continuar a ser a estrela do mesmo. Aparecer um miúdo de 18 anos que lhe rouba o protagonismo não é tolerável, por isso fornece-lhe a resposta errada, ficando surpreendido quando ela é, inteligentemente, preterida. Todo o concurso opõe a vaidade e o estrelato construído pelos media à  verdade e autenticidade do concorrente. A última pergunta é de uma facilidade evidente e Jamal, o rafeiro, como chega a ser chamado, não sabe. Porthos, Athos mas... Aramis? Mas na sua clara inocência aventura-se seguramente pela resposta certa. Confiança e sorte fazem dele um vencedor natural, porque a sua simplicidade triunfa sobre a desconfiança.
Finalmente, talvez mesmo o amor. Mais uma vez, aparece aqui como motivação para algo mais, como uma espantosa forma de elevação do indivíduo. Por Latika e pelo desejo de a rever e de amá-la, o rapaz do chá inscreve-se no concurso. E ganha. E com ele, o dinheiro que nunca divinizou, e a miúda agora mulher dos seus atribulados tempos de infância nas ruas e bairros de uma Bombaim/Mumbai de que se soube libertar.

3 comentários:

  1. Já vi várias vezes e claro... ADOREI! Do princípio ao fim, tudo nos prende à história. Cláudia M.

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  2. Eu gostei do filme, mas o teu comentário... muito bom, amiga! Como sempre...Lí

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  3. Não conheço o filme, mas gostei muito do texto.
    joao de mirantha

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