setembro 04, 2015

Da imagem e da fúria


As pessoas e até os media dividem-se entre partilhar a foto do menino sírio e não o fazer. Respeito a posição de cada um mas desejo tecer algumas considerações sobre isto. Pessoalmente, partilhei-a. E partilhei-a pela simples razão de denunciar uma realidade que, muitas vezes, só nos marca profundamente e nos faz agir quando entra assim, de forma inesperada e violenta, pela casa adentro, seja via televisão, jornais, internet, redes sociais. É muito fácil - ou mais cómodo - saber que os horrores (ainda) estão longe, imaginá-los ou então nem sequer pensar neles e continuar com a nossa vidinha. Que não seja mal interpretada, as nossas vidas contam, as nossas angústias familiares, profissionais, afetivas, económicas e as nossas dores também. Mas não sou daqueles que se recusa a ver imagens de sofrimento alheio apenas porque dói profundamente -, neste caso, também, a nossa angústia e dor não serão nunca maiores do que as deles - assobiando para o lado e tentando esquecer o que não pode ser esquecido mas simplesmente denunciado. Se uma imagem, que sabemos valer mais do que mil palavras, pode fazer alguma diferença, por mais pequena que seja, então serviu para algo de positivo. Por outro lado, também noto algum pseudo-intelectualismo nalgum tipo de críticas a esta fotografia. Em 1972 a imagem de uma criança vietnamita a correr completamente nua, vítima de napalm, correu mundo e fez história. A denúncia do sofrimento a oriente, feita por fotojornalistas e pela televisão, teve um profundo impacto na opinião pública americana e foi a pressão desta, back home, que acelerou - ou originou, mesmo - o fim da guerra do Vietname. Mas porque consideramos essa foto como um impressionante testemunho documental e olhamos para ela sem polémica enquanto que refutamos olhar e partilhar a de Aylan, defendendo que não é de bom tom usar a imagem da criança (pobre, pobre menino, que apetece abraçar, vivo, e levar para casa...)? É verdade que Aylan morreu e que isso é muito mais doloroso, foi agora, está a ser em direto, faz-nos chorar e abala a nossa consciência. Há gente que nunca consegue enfrentar a sua consciência, de todas as formas, em várias circunstâncias. Respeito, mas não é o caminho. A nossa sensibilidade de não matar galinhas mas comer galinhas não é o caminho, na minha opinião, discutível e subjetiva. Mas ainda a foto de 1972. Refere-se sempre o nome do fotógrafo, como se por ser da Associated Press - ou eventualmente da Time ou da National Geographic ou de outras igualmente conceituadíssimas - como se, dizia, legitimasse o documento, estilizado a preto e branco, pois, enquanto uma foto a cores tirada possivelmente de um telemóvel não recebe o mesmo estatuto de documento para a posteridade. Partilhei a foto, repito, não porque goste de o fazer mas porque repudio o que aconteceu. Tenho lido e ouvido muitas barbaridades sobre a tragédia dos refugiados. E sobre a publicação da foto, também. Pois bem, das mãos de um fotógrafo de renome (e se fosse Mario Testino?) ou das de um polícia turco ou cidadão comum que assistiu a tal drama a diferença, para mim, é nenhuma. E insisto: se a publicação deste horror, porque o é, contribuir para salvar uma criança, uma criança apenas que seja, inocentes arrastados para uma guerra e um mundo de adultos que não compreendem, então já terá valido a pena. Aylan, meu querido, ficarás sempre na nossa memória coletiva. Chorar ao ver-te, pelo menos por dentro, é um sinal de que ainda temos um pingo de humanidade. E fazer saber ao mundo como nos deixaste não o deixa de o ser. Para que as pessoas acordem, não se distraiam e, sobretudo, façam alguma coisa. A denúncia não pode ser confundida com sensacionalismo. Ocultar não é superioridade moral. É uma escolha, tão somente. Compreensível. Mas não será por aí o caminho. Ver é não ficar indiferente. Assim seja.

Sem comentários:

Enviar um comentário