abril 25, 2010

The Sound of Silence



Este foi o primeiro texto escrito para o jornal EPADRV...


The Sound of Silence

O silêncio. Que coisa mais fora de moda. Os jovens não o querem, as pessoas sentem-se mal com ele, aparece-nos como algo estranho, perturba-nos, ali está, a a fazer-nos confrontar connosco próprios e com os outros. O silêncio faz pensar. Ora isso é uma grande chatice. Dá trabalho, incomoda, exige capacidade de criar, enfim não estamos para isso. Então, fazemos o contrário. Fazemos barulho. Consumimos barulho. Nos locais, nas relações, nas aprendizagens, nos media, no entretenimento, no trabalho, nos tempos livres, e por aí fora.
Façamos um périplo por alguns sítios da nossa vida quotidiana. Entramos nas lojas de roupas dos centros comerciais, verdadeiras e queridas mecas do consumismo português, e os décibeis difundidos estoiram-nos os ouvidos. Não ousamos dizer isso porque gerações anteriores não nos habituaram a reclamar e além disso ainda passamos por velhos frente às mais novas que estão atrás do balcão. Onde está o responsável, o patrão? Até gostava de lhe dizer isto, que me incomoda estar a fazer compras no meio de uma música aos berros que me atordoa o espírito. Mas ele não está, delegou as responsabilidades em alguém que não precisa de pensar, apenas de executar, vendendo, e quanto mais presumivelmente bem disposto e alienado estiver, se calhar, melhor.
Depois seguimos para a loja de electrodomésticos. Queremos comprar um imaculado, branco e fresco frigorífico mas encontramos uma barulheira emanada quer de stereos quer de televisores ligados na ficha. Diga-se que estão 356 aparelhos a emitir ondas sonoras e que a proliferação de imagens ajudam à nossa confusão mental, já que a velocidade com que são disparadas acompanham o som, bem lá em cima. Olha, ela enganou-se na marca do frigorífico, não era este/a que queria, mas também, distraiu-se no meio da tecnologia de alta agitação, ah enganei-me, quer dizer, alta definição.
Depois entramos no carro para ir a outro lado e ligamos o rádio para ouvir música e acompanhar as notícias. Não encontramos nenhuma estação a passar melodia, quase todas estão a emitir... ruído. Metal, hip hop, electronic, tecno, house, trance, tudo o que lhe quiserem chamar. Esperamos pelas notícias… Começa uma voz a falar de acontecimentos locais e internacionais, mas olha, melhor, ouve… (se conseguires…) Tudo no meio de “música” (?) enervante que nem sequer deixa que sigamos o desenvolvimento das histórias. E pronto passaram a correr, ele não assimilou nada do que à partida podia, devia, queria. Depois lembra-se das notícias televisivas mas pelo sim pelo não ainda passa pelo quiosque para comprar o jornal. Ler ainda significa ausência de ruído…
Talvez sim talvez não. Os jovens de hoje, no geral, dizem gostar pouco de ler. E, quando já estamos a achar fantástico que o digam que o façam, descobrimos que lêem sim, o que quer que seja, ou estudam, mas de auscultadores nos ouvidos. Estar em silêncio é uma brutal seca, têm de estar distraídos, a consumir o que apenas às vezes alguns deles chamam de música, tem de haver uma espécie de divertimento non-stop. No quarto, nas aulas, na rua, há-de haver por perto um MP3 e um Ipod e um outro device qualquer para animar o pessoal. Então não se interioriza nem cultiva nada, nem afectos em casa nem matérias na escola. Na rua, passam apressados e escondidos atrás dos seus sons, sem sorrisos, sem espaço para olhar o mundo em redor…
Deslocamo-nos, então, ao cinema para respirar um pouco de romance e ficção. Já sonhamos com as histórias e suspiramos pelos protagonistas (não é afinal, também isso a magia do cinema?) mas antes ainda há tempo para sermos bombardeados com sons consideravelmente estridentes que não chamaria musicais, acompanhados de imagens em efeito turbilhão que nos violentam algum sossego no “escurinho do cinema” que afinal procuráramos... Os trailers são cada vez mais violentos, a publicidade é assustadoramente vertiginosa. Elas arrependeram-se de sair de casa, dir-se-á que envelheceram, não negam se isso significa desejar um pouco mais de calmaria...
Vivemos assim numa época em que parece que temos de estar constantemente animados e em perepétua agitação. Não há momentos para reflectir, trocar impressões, interiorizar conceitos, absorver valores.
Nos anos 60 do século passado a dupla Simon e Garfunkel cantava a música que dá título a esta crónica.
“…And in the naked light I sawten thousand people, maybe more.People talking without speaking,people hearing without listening…”
Ouvi-la e compreender o seu poema é, de facto, um convite a uma certa introspecção. Um convite a dizer não ao ruído por alguns ou muitos momentos e deixarmos construir dentro de nós uma lembrança, um projecto, uma ideia, um afecto...

abril 24, 2010

Madrigal


Hoje é o Dia Mundial do Livro. Na poesia, sempre gostei muito de Eugénio de Andrade...
Madrigal
Tu já tinhas um nome, e eu não sei
se eras fonte ou brisa ou mar ou flor.
Nos meus versos chamar-te-ei amor.

(...)
Eugénio de Andrade

abril 19, 2010

Orgulho e Preconceito, escrevia Austen



Nem de propósito. Na altura em que estreia o filme adaptado da obra da escritora inglesa, está em Lisboa uma actriz brasileira com uma curiosa peça em cartaz. Entretanto, disse a mesma numa entrevista que observou que os portugueses são muito preconceituosos (Lília, você é tão gira), que, para eles, ir ao psicanalista ou analista, é sinal de que se é maluco. Continuou, dizendo que, pelo contrário, no Brasil, é muito mais fora do normal não fazer psicanálise ou análise. Que todas as mulheres brasileiras modernas, com vidas carregadas de sonhos, expectativas, stress, dúvidas, angústias, e que mais, vão sem problemas ao divã. Dizem o que pensam, expressam o que sentem, relatam o que vivem, sem complexos de espécie alguma, dentro e à volta delas. Grande povo, sem dúvida, com tanta praia, habituados às ondas, não fazem onda com estas coisas, gente boa onda, não enrolam na areia, não enterram a cabeça na areia, o divã não é assim tanta areia.
Pois claro que, por cá, a coisa complica-se um pouco. O nome é psicólogo. Ou pior, psiquiatra. Trememos só de ouvir esta especialidade em medicina. Ou rimos dos desgraçados. Dos próprios que dão consultas e dos que vão às consultas. É gravíssimo entrar num consultório deste tipo. As pessoas estão, ou pior, são malucas mesmo, doidas à brava, loucas varridas. E dão-se fortes vassouradas a quem lá vai, varra-se essa gente da nossa companhia, a cabeça dessas pessoas não funciona. Tudo o resto pode não funcionar. O fígado, o baço, o pulmão, a articulação. Mas a cabeça não pode ter momentos mais fracos. Ou o coração, leia-se alma ou sentimentos. Ou a vida. Isto já é sinal de fraqueza, de incapacidade, de insanidade. E depois, que coisa tão estranha, falar de nós a um estranho. Estranha-se, então.
É óbvio que as pessoas menos egocêntricas, mas nem por isso mais perfeitas, já que tantas vezes estão demasiado viradas para a vida alheia, não compreendem que, no fundo, há algo de egocêntrico no doente do divã. O egocêntrico gosta de falar de si, não lhe custa nada partilhar as suas impressões e opiniões e emoções e situações com os demais. Daí que, como toda a gente sabe, as estrelas façam terapia facilmente. Conseguem passar horas a ouvir-se e a ouvir de si, há, pode dizer-se, uma quase vaidade no processo. Curiosamente, ao mostrarem-se vulneráveis, dançam de uma forma engraçada com o seu orgulho. Tanto acertam com o seu narcisismo como dão o braço, a torcer. E a mão, à palmatória. Assumem o que são, mostram-se como são, vão ao fundo de si mesmas. Auto-analisam-se e, desta forma, conhecem-se. Por outro lado, não querem ir ao fundo. No fundo, a estrela é um doente mais que... são.
Claro que não queremos bater no fundo. E procurar ajuda, se for esse o caso, é um acto inteligente e de maturidade. A burguesia dos costumes e a tacanhez das vistas não alcançam isto mas não faz mal. E depois, falar com alguém que não se conhece, que horror. Óptimo, digo eu. As melhores conversas podem acontecer num aeroporto, por exemplo. O desconhecido ao menos não nos cobra coisas que às vezes não podemos dar. O nosso psicanalista cobra dinheiro, pois, realmente não sai barato, mas curiosamente isso é bem mais fácil pagar. Obviamente que ter alguém a quem se paga para nos ouvir soa certamente mal a muitos mas também não faz mal. Fazer mal é parar no tempo. Mal é ser cruel ou ignorante. Mal é gozar com as fragilidades. É não ouvir nem entender Pink Floyd em “Comfortably Numb”. Pois eu cá, gosto demais desta psicadélica canção. Sei a letra de cor, ah pois sei. Mas pronto, eu sou um bocado para o egocêntrica. Portanto, se tivesse mais dinheiro ia no divã regularmente sem preconceitos e fazia terapia na boa. Ou análise, que em português do outro lado do Atlântico soa bem. Isso porque o Brasil descomplica e liberta enquanto que por estas bandas se complica e se aprisiona.
Lília Cabral, querida, traga a peça aqui, traga, para meu gáudio, sabe que eu sou uma mulher moderna, um pouco louca, pois então, e depois leve a mesma o mais possível por este país fora. Os portugueses, que engraçado, não vão no psicanalista e arrasam (com) quem vai, mas coitados, por baixo dos panos, ou à português daqui mesmo, debaixo do verniz, andam muito dêprê. Bem precisam de elevar a moral. E já agora de ter umas luzes sobre o assunto, que, no fundo, no fundo, vivem escondidos na escuridão. Por orgulho e preconceito, coisa antiga, século XIX, não abrem a cabeça nem o coração. Não querem, não sabem, não conseguem sentar no divã.

abril 18, 2010

InCultura(s) - Parte II



2. Dizia eu, então, há uma semana, que há em Portugal um profundo desinteresse pelo mundo ou de como a abertura ao mundo muitas vezes apregoada desde o tempo das descobertas é hoje praticamente nula. Sim, claro, nunca os portugueses viajaram tanto. Chega o Verão e as agências de viagens comprovam isso. Mas, como disse o actor Rogério Samora há alguns anos numa entrevista (partindo do princípio que essa revista reproduziu realmente palavras suas), “os portugueses não viajam, passam férias no estrangeiro”. Ora isto é completamente diferente.
Viajar significa observar, conhecer, envolver-se, adaptar-se, enriquecer-se, transformar-se até. Significa mergulhar e submergir os sentidos de forma intensa num outro mar que não o nosso. Para falar francamente parece-me que a maior parte de nós é o chamado turista de hotel, que só espera facilidades e comodidades e que não está disposto a correr riscos e a aventurar-se no desconhecido para absorver um conhecimento maior e mais real da realidade de qualquer que seja o local ou país dos cinco continentes. Aliás, ainda mais francamente, por aquilo que se observa, a maior parte das pessoas que vai para o estrangeiro, passar férias, pois claro, fá-lo quase sempre cheia de um incompreensível medo, frequentemente acompanhada de preconceitos e muitas vezes até com uma certa arrogância cultural.
Vou ser honesta. Claro que é impossível não sentir nunca toques de etnocentrismo quando somos postos perante tradições ou práticas a que não estamos habituados e sobretudo perante rituais ou esquemas sociais que a nós nos parecem estranhos (mas não definamos estranho, aqui, tal questão levar-nos-ia muito longe...). Começamos logo a comparar e achamos ou tudo muito primitivo ou tudo muito pitoresco ou tudo muito cruel ou tudo muito exótico. Não fugirei totalmente à regra...
A propósito do caso Maddie, houve uma quantidade de gente altamente incomodada pela forma como, diziam, os ingleses viam Portugal – um país exótico a lembrar Marrocos, onde nada funciona e cheio de incompetentes. Parece-me que se esquecem, esqueceram momentaneamente, que esse comportamento temo-lo nós em Marrocos precisamente e no Norte de África e na América Latina e na Ásia e no Médio Oriente e no oriente menos próximo (o que será que se diz no Dubai, confesso a minha curiosidade) ou seja em muitos lados que não estejam no mapa europeu, sobretudo europeu ocidental. Nós também achamos que somos muito melhores que esses povos. Olha, às vezes somos. Quer dizer, há coisas que temos e fazemos melhor. E outras, pior. É a vida.
Invariavelmente há bom e mau em todo o lado e é isso que importa saber. Celebremos realisticamente o que temos de bom e aprendamos humildemente o que os outros também têm. Registemos no nosso diário de bordo, não apenas que o hotel era fraco ou que a comida não era boa, mas, e sobretudo, as enriquecedoras experiências que estar em contacto com as diferentes culturas sempre nos acabam por trazer. Sejamos pois receptivos e ousados nas maravilhosas ou perigosas e surpreendentes ou decepcionantes viagens por esse incrível mundo.

InCultura(s) - Parte I



Não sabemos nada da Bolívia. Alguns sabem que a capital é La Paz ou que foi lá que morreu o Che. Pouco ou nada sabemos da Mongólia. Outros terão ouvido falar do deserto de Gobi e saberão que a sua capital se chama Ulan Bator. O que sabemos da Namíbia, do Chade? Que ficam em África e que têm decerto uma capital cujo nome não lembramos ou nunca soubemos. E por aí fora. Literalmente: fora. Ou longe. Portugal, na minha opinião, está virado para dentro, fechado, vistas curtas, provincianismo. De facto, num mundo que se pretende cada vez mais globalizado, é um facto que a nossa incultura do mundo se torna cada vez maior e mais evidente. Comecemos, então.
1. Não falemos aqui das pessoas bem informadas, sedentas de saber, ávidas de conhecimentos. Essas facilmente procuram e encontram respostas para as suas curiosidades, de várias maneiras, a diferentes ritmos. Geralmente gostam do mundo e tentam conhecê-lo. Dissertemos um pouco, sim, sobre o grosso da população portuguesa, mesmo sobre as massas. Sobre os nossos familiares, os nossos vizinhos, os nossos alunos, os nossos colegas.
A maior parte dos portugueses não deve (nem tem de) possuir tv cabo. Não vê o Travel ou o Canal História ou o Odisseia. Não tem, deste modo, acesso a programas que nos levem para outras paragens que não sejam a esquina ou o quintal do vizinho ou então o Brasil ou os Estados Unidos. Telenovelas ou séries frenéticas e psicóticas, ou ainda notícias de faca e alguidar são o prato que nos servem ao serão, dia após dia, melhor, noite após noite, piorando um pouco mais no verão, época em que a televisão ainda se demite mais de (nos fazer) pensar (ou sonhar, ainda podemos?).
Falar da televisão (portuguesa) aqui não é ingénuo nem acidental. Continua a ser o mais poderoso meio de comunicação social, tendo a capacidade de elevar e engrandecer uma geração ou de a afundar e empobrecer culturalmente. Não mostrar o mundo, com as suas maravilhas e misérias, mas também mostrar as suas geografias, a(s) sua(s) história(s), as suas etnias, os seus monumentos, as suas tradições e também as suas modernidades, é uma falha colossal no que diz respeito à formação de cidadãos do mundo, precisamente. Pode aqui defender-se a ideia de que as pessoas podem procurar o que ver. Contudo, na minha opinião, a cultura das culturas do planeta, ou seja, o gosto pelo conhecimento do mundo em que vivemos não deve ser elitista, apanágio daqueles que podem e/ou sabem informar-se mas sim mainstream e chegar às massas, educando-as e edificando-as. Essa cultura deve entrar pela porta dentro sem pedir licença, assim como um raio de sol que nos ilumina e aquece e que não pede, obviamente, autorização. E quem não fica mais feliz com um raio de sol? I wonder...
Chega a ser quer hilariante quer revoltante o desconhecimento dos alunos nestas matérias, a colocarem, por exemplo, Paris nos Estados Unidos e a Grécia na África do Sul, e isto só para falar de incultura geográfica. Mas numa televisão que cultiva as séries de adolescentes acéfalos a desfilar em bikini e que não precisam de se esforçar para nada, acaba por se compreender este alheamento e desinteresse pelo que roda para além do umbigo e da boa vida.(Continua...)

abril 17, 2010

LatinAmerica


Nas férias do Carnaval, e de uma assentada, fiz uma espantosa incursão pela América Latina. De uma assentada, disse, dois filmes a mostrarem histórias e pessoas. De uma assentada, já disse, duas figuras da cultura mundial a revelarem-se mais. Ernesto “Che” Guevara e Frida Kahlo. A revolução. A juventude idealista do primeiro. A arte. O feminismo atrevido da segunda. E também nela o idealismo. E também nela a revolução.
N”Os Diários de Che Guevara”, cujo nome original remete para a motocicleta, viajamos de forma ora trepidante ora ternurenta. Aventura a toda a prova, seguimos o trajecto de um Ernesto ainda jovem, por cidades e paisagens sul-americanas. Deslumbramo-nos com a imensidão dos espaços, sentimos a aridez de locais e de vidas, vibramos com a música ritmada e envolvente que nos arrasta por quase todo um continente.
Em “Frida”, é uma vida que se desvenda devido à imortalidade que a grande pintura permite. Aqui, acompanhamos o trajecto desta mulher num México colorido e fervilhante, mas também intelectual e cheio de fervor revolucionário. Aliás, não é por acaso que Diego Rivera pinta murais de inspiração marxista e não é por acaso que Leon Trotski se aí refugia, acabando depois por encontrar a morte.
Voltemos a Che. Este herói romântico que ficou na memória colectiva de muitos povos em busca da independência e na individual de muitos sonhadores de esquerda, surge aqui, e talvez curiosa e inesperadamente, caracterizado por uma franqueza às vezes demasiado desprovida de sentimento, demasiado fria. Nasceu em meados de Junho. Muitas vezes o olhar era distante, pensativo, a expressão carregada de idealismo etéreo. Dono de um inegável fascínio, sem dúvida. Mas a sua verdade era também nua e crua demais, quase clínica, talvez também como marca natural de alguém que estuda(va) medicina sem ser na área do estudo da psique. Assim sendo, “Os Diários” foram interessantes também, para mim, enquanto pequeno estudo da personalidade, até porque havia um paralelo a fazer com o seu amigo, e companheiro da aventura, Alberto Granado, também a estudar para médico, e em cujos livros o filme também se baseia. Este homem, que nasceu nos princípios de Agosto, era de facto bem mais egocêntrico e teatral do que Che. Estamos perante alguém que escondia a verdade, o que soará para muitos a falso, mas se atentarmos um pouco melhor, vemos que a escondia essencialmente para não magoar os outros, para não os assustar, fantasiando a realidade como reflexo de um coração mais generoso e afectivo... Leal a Che toda a vida, seguiria-o até Cuba onde, de resto, ainda vive e dirige uma importante clínica. Contudo, ou não, penso que a viagem de moto foi crucial para um Che que haveria de apaixonar aqueles que queriam e querem mudar o mundo. Creio que o contacto com as pessoas em sofrimento, quer físico quer social, o humanizou muito mais e que não voltaria a ser e que não foi mais o mesmo.
Voltando a Kahlo, ao visualizar a sua biografia no écrã, toda ela envolta numa fotografia quer plena de cor quer plena de fantasia que em muito se inspira nas telas da própria artista, vemos alguém com evidentes marcas de sofrimento, muito físico e algum psicológico. A sua vida está aqui praticamente toda retratada, por oposição ao filme sobre Ernesto Guevara. Há aqui e acolá um toque erótico, ou não tivesse Frida nascido em Julho, assim como uma pincelada de sentimentos indefinidos (a sua própria sexualidade revelava uma certa ambiguidade) e de confusão interior... De qualquer forma, é verdade que Frida nos toca e nos comove e nos desconcerta e arrebata e, sim, claro, como deve ter escandalizado formas de pensamento mais organizado e ou mais retrógado. Criativa e arrojada, doida e apaixonada, mas também resistente, suportando dor(es) e caminhando para a perenidade. Os seus quadros, pois, eternizam-se na nossa mente, no espólio cultural de cada um de nós, enriquecendo-o. As suas relações com Rivera e com Trotsky, entretanto, alargam o nosso conhecimento da história e a visão transversal que não podemos deixar nunca de ter da mesma. E depois, tal como no percurso de moto, o ritmo da música de sons hispânicos a acompanhar-nos, a fazer-nos sentir uma nostalgia estranha de algo que não vivemos e de lugares que não conhecemos.
Há nestes dois filmes, uma sensação de grande liberdade, de absoluta e infinita liberdade. Há também, inequivocamente para mim, um forte apelo à e um brutal gosto pela revolução. Revolução política, social, artística, humanista. Há também uma paixão, pela aventura e pela arte, um estudo também, da amizade e do amor. Ou dos amores, que podem ser a arte e a aventura, a geografia e a pintura. E, sempre, sempre, as pessoas, as suas histórias, os seus defeitos, figuras falíveis, porque humanas, tornadas mitos, os dramas, os humores, o humor, as contradições dos indivíduos e a criação, a causa, o sonho, a imortalidade.
Estes dois filmes vistos de uma assentada são também um inegável convite a viajar livres por um continente, lá, e um verdadeiro desafio a viver livres num outro, cá. Esquecendo-nos dos índices da bolsa e do telemóvel, da crise e do trânsito, das tarefas domésticas e dos deveres profissionais, dos almoços de família ao domingo que não nos apetecem e das compras no supermercado que também não nos apetecem, viajemos e vivamos pois no limbo que é o inesperado. Pelo menos durante quase cinco horas foi possível. Projectarmo-nos numa outra dimensão. Existirmos de uma outra forma. Dios, o que dois DVDs podem fazer. De repente, apeteceu-me ouvir os Jáfumega. Aliás, mais. Com a chegada das férias de verão, com a vida a pedir mais calor e mais ar, apetecia-me mesmo era apanhar o avião e rumar aos sons quentes da LatinAmérica...

Atempadamente,




Em inglês existe uma palavra para o tempo atmosférico e outra para o tempo cronológico. Não me lembro de na cultura popular anglo-saxónica haver referências directas à primeira, weather. Pelo contrário, vêm à memória inúmeras em relação à segunda. Na música, desde o clássico As Time Goes By, passando pelo psicadélico Time (dos Pink Floyd), chegando até ao pop Time After Time. E assim também na literatura, no cinema. Provavelmente todos os artistas se debruçaram sobre a noção ou o conceito de tempo. Certamente porque a arte é uma inequívoca expressão da realidade, da vida. E o tempo uma das mais constantes e porventura inquietantes componentes da existência.
Vivemos no tempo, usamos o tempo, contamos o tempo, ganhamos tempo, perdemos tempo, queremos travar ou acelerar o tempo, queremos tempo, queremos eternizarmo-nos no tempo. É absolutamente incrível como o sentimos, como o pensamos. E mais incrível ainda como o tempo nos envolve e nos domina, nos aprisiona mas também como nos pode libertar, dependendo do tempo que é, do que dele fazemos. E podíamos estar aqui horas a jogar com as palavras e com a dimensão imensa que o tempo constitui. Horas, dias. Muito tempo mesmo.
Aqui há algum tempo, estava a ler a crónica do director de um conhecido semanário e deparei-me com uma frase que captou a minha atenção durante algum tempo. Dizia ele, basicamente, que há pessoas que estão sempre sem tempo, sempre cheias de pressa e que dão a impressão de estarem permanentemente ocupadas. Daí que, concordando, passe agora eu também a um lado menos filosófico e claramente mais prático da questão.
É alucinante, de facto, o ritmo a que se vive em quotidianos impregnados de modernidade. Por uma questão de qualidade de vida, de equilíbrio emocional e até de felicidade pessoal era desejável que conseguíssemos dias mais tranquilos e onde não sentíssemos tanto a pressão do tempo. Claro que isto se tem tornado cada vez mais difícil de obter para todos nós – o emprego, a família, o trânsito, as contas, a crise, o (in)sucesso, até o lazer. Conciliar, gerir e organizar todas estas áreas ao mesmo tempo pode mesmo dar cabo do nosso tempo. De qualquer forma, e retomando a ideia do director cronista, há sem dúvida pessoas que estão sempre a queixar-se da falta de tempo. Não há tempo para fazer uma visita, para mandar um já de si mais rápido e-mail, para telefonar nem para enviar uma sms. E assim passam aniversários, casamentos, nascimentos, doenças, desilusões, divórcios inclusivamente. Culpa-se assim o tempo e assim passa o tempo. (Recorde-se aqui o algo quieto e maravilhoso Os Despojos do Dia de James Ivory, exemplo claro e para mim inesquecível de como as coisas não ditas a tempo podem perder-se irremediavelmente no tempo.)
E as pessoas ocupadas? Bem, as pessoas sempre cheias de pressa porque fazem muita coisa às vezes parecem dizer-nos que somos uns inúteis sem uma vida preenchida e, desta forma, infelizes. Há muitas vezes a ideia de que preguiçar é absolutamente antiquado, errado, pecaminoso. Então as pessoas correm muito, estão sempre a dizer que foram aqui e que agora vão ali, e que já fizeram e vão fazer a seguir milhentas coisas, anunciando intenções, descrevendo acções que a nós pouco nos importam, dando a ideia de que produzem muito muito. No trabalho, nomeadamente, isto é para lá de irritante. E ainda por cima é errado. Este muito muito às vezes é completamente infeliz. Qualidade zero, criatividade abaixo de zero.
Falando em zero, acabo de olhar para o relógio e vejo um zero indicando que já passa da meia-noite. É o tempo a dizer que o meu corpo e mente pedem preguiça. É tempo de terminar. Por hoje.

O Frio do Nosso Descontentamento


1. Absolutamente e, por vezes, brutalmente real, a verdade é que o frio também faz parte do imaginário colectivo universal. Nas sociedades ditas ocidentais, por exemplo, a sua alusão na cultura popular tem sido deveras constante. Desde os nórdicos postais de natal, preenchidos com cenários de neve que muito fizeram as nossas fantasias da quadra, até à literatura e ao cinema (vejam-se livros como O Espião que Veio do Frio, de John LeCarré, e filmes como Cold Mountain, de Anthony Minghella), sem esquecer a música com inúmeras composições a destacarem quer a palavra quer o conceito logo a partir dos seus títulos (Cold as Ice, Foreigner, Baby It´s Cold Outside, Ray Charles, Cold, Tears for Fears, I´ts Cold Outside your Heart, The Moody Blues, e muitas outras). E não esqueçamos a visão romântica que a sua estação também a muitos proporciona. O crepitar da lareira, o prazer renovado da leitura, o aconchego da lãs, as bebidas quentes, os serões familiares, a conversa mais intimista...
Muitas vezes severo e dizimador, o frio tem jogado a sua quota parte de importância também no decurso da história. Dois quase invencíveis exércitos por causa dele sucumbiram, com a Rússia a clamar para si vitórias sobre as tropas de Napoleão e, mais tarde, de Hitler (general inverno apresenta-se!). Prova de que a natureza é avassaladora e poderosa, com os rigores do inverno a terem efeitos na moral, alma e corpo de milhões de pessoas. Mais recentemente, o conceito de Guerra Fria foi expressão dos antagonismos sociais e políticos entre os Estados Unidos (e aliados) e o bloco soviético até ao desmonoramento deste.
2. A noção de/do frio está presente para além das dimensões geográficas e climáticas. Também a encontramos na vertente psicológica, ajudando a destrinçar traços de personalidade. Os povos de expressão inglesa distinguem claramente a palavra cool ( e não cold) da hot-tempered para descrever as pessoas e as suas atitudes e reacções. Têm até uma expressão idiomática engraçada para atribuir aos carácteres que dominam mais as emoções, ou melhor, paixões: as cool as a cucumber. De facto há seres humanos que têm claramente a capacidade de se manterem algo fleugmáticos perante inúmeras questões, por oposição aos indivíduos mais explosivos e vulcânicos. Mantêm, pois, a cabeça fria. O ideal de reacção, o domínio da mente, o oposto da impulsividade. Tal como no tempo fresco (cool morning, cool breeze), as situações são vividas com maior suavidade.
Para além da língua inglesa, também na portuguesa, e porque as palavras transmitem ideias, encontramos várias expressões que nos remetem para a significância do conceito “frio”. Realizou tudo a sangue-frio (indicando extremo auto-controlo). Senti-me gelada (medo, desconforto emocional). Sentiu um frio na barriga (nervosismo). E outras do género.
3. Mas desenvolvamos a ideia de frieza associada à natureza das pessoas. Como definir um indivíduo frio? Dizer que ele é ”cold-hearted” ( de coração frio) à partida descreve alguém como sendo duro, com dificuldades em sentir compaixão. Parece haver aqui uma ligeira diferença entre dizer que ele é “cold”, curiosamente. As pessoas verdadeiramente frias serão aquelas em que há ausência de paixão, de sentimento, em última instância, de afectividade. Trata-se de uma noção bem mais subtil. Assim parece, realmente. Há pessoas simpáticas (leia-se o contrário de sisudas), comunicativas e aparentemente muito dadas que na verdade revelam, talvez inesperadamente, uma grande falta de calor. Os afectos são dificeis de desenvolver, manter, prevalecer. Há claramente uma sobreposição do mental sobre o coração. Por vezes há nelas uma franqueza desprovida de qualquer inteligência emocional, as palavras incomodam e mesmo ferem, ainda que ditas no meio de sorrisos, e elas não se apercebem ou não querem saber do impacto das mesmas. Não estejamos com meias palavras - não nos aquecem, pura e simplesmente.
Há, por outro lado, uma grande dose de superficialidade nesses indivíduos. Superficial quer dizer não ir profundo, não sentir até ao amâgo, não entusiasmar-se muito mas também, e consequentemente, não sofrer muito. Conseguem desta forma sobreviver a questões que seriam mais problemáticas para pessoas mais sentimentais e com maior insight psicológico. Sem picos de emoção, a dor atenua-se sobremaneira, dir-se-ia.
4. Quanto à frieza, efectivamente, trata-se apenas de uma característica. Talvez muitos de nós ou mesmo todos tenhamos uma faceta assim. Ela é o expoente máximo do nosso lado mais racional, que trava muitas das nossas acções, más e também boas. Mas provavelmente por esta última consequência, e tendo em conta o frio de rachar de Janeiro, aqui fica a sugestão: aqueçamo-nos com o fogo de uma lareira e de um afecto. O frio tolera-se em doses q.b. Ondas de calor são bem vindas, já que as palavras sairão também elas mais calorosas e o coração, nosso e dos outros, sentir-se-á mais reconfortado e mesmo feliz...