janeiro 22, 2012

Ela canta, a ceifeira, será pobre?


A Maria Betânia, e no fundo a falar de si própria, dizia no outro dia que só é feliz quem não tem juízo. Era o título da entrevista e quando a li mais atentamente as suas palavras levaram-me de imediato para o poema de Fernando Pessoa. A ceifeira feliz porque não tinha consciência gravou-se-me na memória quando o li pela primeira vez no último ano do liceu.
"Alegre inconsciência." A ceifeira que canta e ceifa na sua grande simplicidade. Deve ser bom, muito bom, ser-se simplesmente simples. Nada ambicionar, nada almejar. Sem perceber, sem discernir. Não há pensamento, não há análise. Consequentemente, não haverá sofrimento, não existirá infelicidade. Talvez como andar na montanha russa, pulsações a mil, não há tempo para usar o cérebro. Ou como estar debaixo de água, relaxadamente, com todas as ideias submersas. É verdade - pensar dói bastante. Pensar é uma chatice. Pensar é não ser feliz.

Daí que as pessoas com forte consciência sejam no mínimo complicadas. Trata-se de um monumental importúnio. E depois, os simples, os felizes, aqueles que parecem tão felizes, nunca nos entendem, pois não? Eles realizam, executam, ceifam.... E os outros? Têm noites de insónias e são ansiosos. Têm crises de identidade e de existência e de seja lá o que for. São eternamente insatisfeitos. Querem sempre mais e não sabem bem o quê. É aquela simbólica canção do Variações, só estou bem onde não estou porque só quero ir aonde não vou, que sempre me disse muito, que sempre nos terá dito muito. Inquietude, dificuldade em viver o bom no momento e esperar algo indefinido que se quer melhor ainda. Tão tão esquisito, como um bichinho que nos pica e pica e volta a picar, sem cessar. Será de origem geracional, parece que sim, de origem urbana, parece também que sim, de origem conjetural, veja-se o mood português no momento, também assim parece, de origem nervoso-mental, também sim, sim. O lado menos romanesco da vida, para uns, ou o mais dark, para outros.

Contudo, e porque sempre pode haver luz, a inquietação, segundo especialistas como a psicoterapeuta Isabel Leal, é crucial para a vida: o "frémito", a "expetativa", a "tensão", a "vigília são estados psicológicos fundamentais (in Guia de sentimentos prováveis). São eles que muitas vezes permitem o sonho, a criação, a mudança, a própria existência. E, para além disso, como bem o explica Inês Pedrosa nas suas crónicas femininas compiladas, não nos podemos demitir de pensar. Pensar dá trabalho, indiscutivelmente. Pode confundir-nos, incomodar-nos, mesmo. Daí que muitas pessoas optem por não o fazer, por ser bem mais simples cantar e ceifar. Deixam as preocupações para os outros, pedem a alguém que se angustie por elas, escondem-se sob capas de falso otimismo, não se envolvem em nenhum tipo de luta ou reivindicação, menosprezam as questões psicológicas. É tão mais simples. E deve ser tão mais tranquilo.
(...)

Quanto a nós, os conscientes, complexos, complicados, não somos  entendidos por todos, há mesmo quem nunca nos vá entender. Haverá, contudo, pouco a fazer. Nem todos nascemos para, alegre e inconscientemente, usar a voz e a foice nas aprazíveis doiradas e serenas searas deste mundo.

O Recado, ESAP, novembro 2005

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