março 26, 2011

A Jóia da Coroa II


Por ser também o nome de uma excelente série britânica dos anos 80 que vi e revi e que se me perpetuou na memória. Hari Kumar. Daphne Manners. E de como o Raj britânico não aceitou nunca a fusão amorosa das duas culturas. Na verdade, a colonização britânica na Índia foi sempre caracterizada por uma considerável distância psicológica entre colonizador e colonizado, dir-se-ia mesmo distância afectiva. Eram muito mal vistos os romances interculturais, sobretudo se era a mulher a ser a "branca". Como era aqui o caso. Daí que a violação de Daphne, não por Hari, obviamente, mas por um grupo de violentos e radicais indianos, tenha servido os propósitos daqueles que apregoavam a segregação social, de um lado e de outro. Um romance entre duas pessoas que se tinham apaixonado tornou-se uma acendalha para a resistência indiana, e um reforço dos princípios racistas e coloniais de muitos ingleses.
Mas curiosamente essa Índia colonial sempre exerceu um grande fascínio em mim. Valiosa, opulenta... Aqueles grandes palácios e aquelas paisagens exóticas, a vida serena de que os britânicos usufruiam, em contraste com a colorida e barulhenta confusão típica indiana, mas ao mesmo tempo o modo como se atraiam algumas vezes apesar das diferenças, do lifestyle, das feridas, do abismo. De tal forma que, sendo eu uma incurável geo-romântica, sempre adorei estas histórias de amor conturbadas e abrigadas por um fundo preenchido com fronteiras culturais e afins. Em "Passagem para a Índia" (maravilhosos filme e livro no curriculum) também há quase uma história dessas a acontecer. Mas o estigma da violação persiste e, consequentemente, o da não-comunhão física e espiritual também... Como a querer dizer que tal não seria, nem foi, possível. Porque os indivíduos e os impulsos da sua alma são muitas vezes esmagados pelo todo, pelas conjuncturas políticas, sociais e históricas. E lá não se vive o amor.
A perspectiva que tenho sobre a Índia, foi então, durante muito tempo romanceada e filtrada pelo cinema e pela literatura. Com o passar do tempo, e com a tendência para o exótico chic, lá se esbateu a vontade de conhecer esta nação. Por isso achei extraordinário o programa sobre os "Portugueses Pelo Mundo" que vi há dias. A forma descontraída e adaptável como enfrentam a experiência Índia. Caos, cor, tradição, pobreza, riqueza cultural, anacronismo, espiritualidade, confusão, exotismo, miséria - uma mescla única mas que admito como difícil no terreno. Fascinante mas a exigir um estofo muito próprio, um despojamento de noções como conforto, luxo, organização, estética, qualidade e outros. Dizia há muitos anos uma conhecida minha, uma hippie de grande simplicidade e total ausência de vaidade, "Não entendi a Índia". Ela, profundamente espiritual e sem caprichos. Portanto não será para todos a capacidade de se adaptar ao estilo de vida indiano e às suas idiossincracias. Leva-me a pensar que não a teria, de todo. E, de certa forma, gostaria que assim não fosse. De não me ter ficado pela visão romântica. De não ter ficado presa às memórias dos livros e filmes que li e vi. De não conseguir lidar com a brutal ainda que autêntica sensorial realidade de um fantástico e avassalador país de contrastes. Barreiras interiores...a ultrapassar...?


março 16, 2011

O outro grito

No outro dia assisti a uma  impressionante reportagem sobre a actual situação nos Montes Golan. Pertencendo à Síria, foram primeiro capturados (na Guerra dos Seis Dias, 1967) e, depois, unilateralmente anexados por Israel (em 1981), não tendo sido essa anexação reconhecida pela comunidade internacional.
A reportagem chamava-se "Across the Shouting Valley" e dava conta da algo bizarra e comovente forma de comunicação entre famílias e amigos separados pela história, pela guerra, pela fronteira, pela inimizade, pela tonteria humana. Vemos como as pessoas comunicam acenando lenços, gritando e usando um megafone para poderem falar e matar saudades de quem não podem tocar fisicamente. Estão em dois lados opostos da barricada. Chegarem a um encontro físico, para dois países inimigos, implicaria esforços diplomáticos consideráveis, presenças das autoridades e controlos de documentos.
No filme é ilustrada uma situação dessas quando uma árabe síria casa com um árabe que vive no lado israelita, precisamente nos Montes Golan, já que se apaixonaram aquando, se bem me lembro, de uma visita de trabalho deste à Síria. O casamento, só possível cinco anos depois, foi de um aparato estatal fora do comum. Entrega da noiva num checkpoint. Tropa a acompanhar, muita lágrima e um futuro marcado por uma estranha distância familiar. De facto, a noiva não mais voltaria ao seu país e comunica com os pais por telefone, já que vivem na capital síria. Há mais de 20 anos que assim é. (O pai, que se encontrava em Damasco por altura da invasão, não teve nunca mais autorização para regressar à terra natal nos Golan).  Porque não abrem o checkpoint - pergunta. De que modo isso afecta a segurança? Porque não posso ver a casa onde cresci? Porque não posso ver a minha mãe?
Milhares de sírios fugiram quando centenas de aldeias foram arrasadas com a invasão israelita. Hoje, restam apenas algumas aldeias onde estão muitos sírios, agora no "lado de cá - Israel". São estas pessoas que, por entre lágrimas e corações feridos, comunicam aos gritos, pelo vale que divide as duas nações, com os seus familiares e amigos do "lado de lá". É a única forma de se "verem". Envelhecem separados, nascem e crescem crianças separados, morrem separados. Por fronteiras realmente fisicas, também emocionais, tanto tontas  como cruéis. Arame farpado revestido de loucura e intolerância humanas...
Ver esta reportagem fez-me lembrar dos tempos em que eu era uma pró-palestiniana acérrima. Com o passar do tempo lá me aburguesei também eu um pouco... tornei-me porventura menos radicalizada,  ao ponto de quase esquecer que o conflito israelo-árabe tem, de facto, contornos muito difíceis de esquecer por quem os sofreu na pele. Defendendo a paz e a necessidade absoluta de coexistirem em harmonia, não deixo contudo de ficar chocada com situações de grande injustiça que muitos árabes viveram. Se os judeus muito sofreram e foram despojados de tudo numa europa hitlerizada, também não deixa de ser verdade que muitos palestinianos e outros árabes da região também perderam tudo...terras, famílias, empregos, vidas.
Comovo-me imensamente com os olhos inundados de quem grita e com as vozes que ecoam através do vale.... num programa que vale a pena ver. Para saber. Que não deixemos nunca de saber. É que no ocidente vem tudo muito filtrado...ao sabor dos nossos objectivos. Mas há um outro lado que importa conhecer. Conhecíamos nós esta Síria? O grito do vale? Pobre geografia a nossa, a que se esgota nos pacotes de viagens e nos jornais telealarme...

março 11, 2011

(In)Comunicabilidade



Um dos meus filmes de eleição é "Babel". Conjuga a minha grande paixão pela geografia com o tema da comunicação (ou falta dela). A frase do trailer que promove o filme é ela própria absolutamente fantástica e emblemática: If you want to be understood ... listen. De facto, será inegável que ouvir será uma belíssima característica. Que nem todos partilham, ainda assim. Há pessoas que falam falam, falam o tempo todo e soam mesmo estridentes aos nossos ouvidos. Ouvem-se a elas próprias e nunca a nós. Quem nunca conheceu ou experienciou alguém ou algo assim? Que pena que assim seja, perder-se a noção da presença do outro, das suas necessidades ou alegrias, para não mencionar só ansiedades. Como é possível não ouvir? Bem, não quer dizer que se assimile tudo vindo de toda a gente, mas é imperativo na relação entre amigos, pelo menos. Assim é. Não nos interessam as historietas e lamúrias de muitos, ou as fofoquices e mesquinhices de outros. Mas ouvir quem nos é caro torna-se quase obrigatório. Até para grandes distraídos, como é o meu caso. Comunicar (expressar-se e ouvir, simultaneamente) com o outro é alimentar as relações humanas, é fomentar a intercomunicação pessoal, é construir afectos como a amizade.
No filme, essa necessidade imperiosa de comunicação é expressa pelo não domínio da mesma língua. Sabemos como é importante falar a mesma língua e não apenas do ponto de vista formal. É preciso falar, mesmo, a mesma linguagem, ainda que a língua seja comum. Ilustrando a primeira, no filme temos uma cena verdadeiramente portentosa. A personagem do Gael Garcia Bernal entra em conflito absoluto com os polícias na fronteira México-EUA precisamente por causa do factor língua. Entra em pânico, de certa forma, mas causado também (e não ingenuamente por parte dos objectivos do realizador) pela incapacidade de ouvir... de ambas as partes, ao que me lembro. Que provoca um grande mal-entendido. As coisas precipitam-se e seguem um curso alucinante e também trágico, de alguma maneira. Se passarmos para outra parte do mundo (que belo filme a fazer-nos viajar) encontramos filha e pai japoneses manifestando uma total ausência de comunicação. Isto ilustra perfeitamente a segunda. Dominando ambos a mesma língua física, não falam a mesma linguagem. Há silêncio, há desconhecimento, há distância. E a não-comunicação está lá na mesma. Levando à incompreensão. E a comportamentos de estranha tristeza e deriva da adolescente.
Também nós provavelmente conhecemos indivíduos que não "falam a mesma língua" que nós. Língua em comum mas linguagem em total colisão. E provavelmente também não conseguimos desenvolver com eles relações para além de trabalho ou outras menos significativas ainda. E pode até acontecer que estejam na nossa família, é possível. Não a escolhemos, a alargada, pois não? Mas se se trata de amigos, fruto da nossa escolha, então é imprescindível que nos conheçamos. E esse conhecimento advém de partilharmos uma linguagem em comum. Com amigos estrangeiros´teremos que ter uma outra ponte comum também... a língua formal. Porque sem ela não há comunicação mais aprofundada que resista.
Entre língua e linguagem, parece-me então que é difícil coabitar, melhor, coexistir, numa babel linguística e de ideias e emoções não expressas. Embora e como toda a cena do inusitado acidente em Marrocos sugere (Cate Blanchet é alvejada por um miúdo que experimentava uma arma do alto do monte, enquanto dormitava no autocarro de turistas) haja uma coisa que liga os povos e as pessoas - a solidariedade, a vontade de ajudar, a identificação pelos sentimentos, o impulso pela sobrevivência e em última instância a vitória sobre a tragédia. Estando-se receptivo ultrapassam-se muitas das barreiras linguísticas.
Portanto, e voltando ao princípio, se queres ser entendido ... ouve.

março 05, 2011

Em nome da graça


Inspirada pelo blogue de um amigo, também eu almejei escrever um texto humorístico. Mas a coisa tá difícil cá para este lado. Primeiro é preciso ter graça. Onde está ela? Conheço uma que trabalha comigo, podia ir buscá-la. Mas será isso que me salva? Segundo é preciso procurar um tema, um tópico, uma figura, uma coisa qualquer. Não me lembro de nada. Tento e não consigo mesmo lembrar-me. Jesus Christ. Quer isto dizer que nada tem piada? Para mim? Confesso que, por esta altura, estou a ficar assustada. Leitor ajude-me. O que é que pode ser verdadeiramente cómico para eu fazer o texto? O primeiro-ministro? Portugal? Eu sei que são engraçados mesmo anedóticos mas não me fazem rir muito. Não sei bem porquê mas ...não. Mesmo fechando os olhos e concentrando-me muito... ná, na dá. E lá fora? O Gadaffi tem a sua piada mas não me apetece falar dele. Gosto francamente de o ver atirar papeís na ONU, eu própria fiz isso uma vez quando apresentei um espectáculo de escola, e é uma coisa verdadeiramente libertadora. Olha atirar os papéis todos da escola isso sim teria muita graça. Graça, Maria, Isabel, Esmeralda, Lena... todas ficariam mais leves aposto. Mas o coronel tem uma parte que me chateia, coisa mínima, que é eliminar os opositores. Não sei porquê mas sempre gostei muito de oposições. Sejam elas quais forem. Ser do contra é bem mais divertido do que pertencer ao governo. Uma pessoa fica mais descontraída, pode ser irresponsável e ninguém se manifesta para nós sairmos. Step down, em inglês, que é mais engraçado. (Steps - Passos. Oh pá, esta veio a calhar.) Também podia falar do inglês. Os alunos a aprenderem inglês. Mas como sabem tanto não dá pica. Teriam que ser mesmo fraquinhos. E esses não há. Lamentamos mas não há nos mercados. (Nestes só há nervos e os nossos alunos são do mais relax que há.) Com o decorrer do tempo, fruto de brilhantes políticas educativas e de tecnologia super avançada, a massa estudantil tem-se refinado. Aliás nem sei o que é que os professores fazem na sala de aula. Não estamos a ser, desta forma, francamente úteis. Isto sim, isto pode ser hilariante. Não está o leitor a rir já a bandeiras despregadas? (Não percebo bem esta expressão mas achei que ficava bem aqui. Afinal sempre contém a palavra rir.) Bolas, acho que afinal a graça mora aqui. E eu a pensar que era outra pessoa. Tonta. Sou mesmo distraída. Deixem-me ir ali perguntar aos da casa quem sou. (vou e venho) Pronto, já estou mais descansada. Afinal sou eu. Ooops, por momentos duvidei que era séria e sem piada. Prometo que vou tentar num próximo texto. Era melhor que tivesse sido humorística num primeiro e não num segundo. Afinal primeiro é primeiro e segundo é segundo. Mas sempre pode ser num terceiro. Assim a coisa já muda completamente de figura. Um mau primeiro é mau mas um bom terceiro já é bom. Obrigado leitor por me compreender. E acompanhar. Se você ainda está aí, puxa, você tem mesmo sentido de humor. Você acha piada a tudo. Estou parva. Aliás agora está na moda ser parvo. Livra de não o ser. Hehe.


março 03, 2011

Mortificação




Dizia então eu que a Helena Sacadura Cabral faz observações no seu livro de crónicas com as quais eu me identifico bastante. Uma delas é a de achar que não compreende porque é que a ideia de sacrifício tem de estar associada à existência feminina. Ou seja porque é que a mulher tem de viver sacrificada e sofrida de alguma forma. Trabalho, obrigações domésticas, filhos e família, e todos os papéis que desenvolve ao mesmo tempo com grande esforço e muitas muitas vezes trazendo o esquecimento dela própria como ser individual, pensante e livre.
Será praticamente incontornável a ideia que tal sorte terá vindo através das gerações atingindo as (nossas) mães. Não tendo conseguido estas libertar-se e ter pensamento próprio, o que fizeram foi incutir nas filhas essa ideia de sacrífico, de dedicação extrema e sofrimento pelos outros, derrotadas por sentimentos de culpa surgidos por causa dessa forte moral nelas incutida. Moral ou moralidade. Pesada, incapacitante, castradora. Que têm que estar, de várias formas, ao serviço do homem, numa perspectiva toda ela machista que só arrasta, por exemplo, a já de si pouca colaboração masculina em termos domésticos, na generalidade.
As mulheres que não gostam de se sacrificar e assumem isso são consideradas egoístas, preguiçosas e inadequadas na sua performance sob a idealização feminina das gerações precedentes. E são consideradas assim também pelas suas pares de geração, uma vez que as mulheres sacrificadas e demasiado centradas em aspectos do quotidiano familiar e laboral que teimam em persistir acham as outras umas inúteis sem coração, altivas e não solidárias com o próximo.
Acontece que a nossa participação na sociedade não passa só pelo cumprimento dos deveres e ainda por cima com excesso de zelo. A vida não pode ser só penitência e tormento de moral cristã e de outras confissões. Também existimos ao usufruirmos dos prazeres e das liberdades que nos foram sendo concedidas por muitas lutas travadas. Também existimos como seres pensantes e intelectuais (ou isso tem que ser só para os homens? Era o que faltava.). Também existimos como opinadoras e quebradoras de barreiras. E tudo isto de forma consciente, fruto da nossa escolha, e livre, profundamente livre.
Ainda que com muitas obrigações (quão difícil é ser mulher com milhentos papéis a desempenhar) decididamente não temos que viver amarguradas e presas a esquemas sociais e familiares que nos tolhem as ideias. Não temos que ser escravas de ninguém.  Em casa mas também no trabalho. As mulheres que são escravas do emprego também não estão libertas. Alguns sacrifícios são exigidos mas caberão a todos, homens e mulheres. Nenhum estigma ou lei me diz que devo aceitar o sacrifício como um desígnio divino ou pior como um fado imposto por mulheres que não pensam ou que não se amam o suficiente.

março 01, 2011

Irmandade não muçulmana

Em algumas férias que passei na Tunísia pus-me a ver as telenovelas da Arábia Saudita. Não percebia a língua, claro mas gostava de ver aqueles casarões imensos, as belas roupas das mulheres, assim como os seus penteados  (e constatar que tapadas só mesmo fora de casa). Não creio que tenha sido apenas um pequeno ataque de futilidade que me deu. Via por curiosidade cultural, para tentar entrever algo mais da realidade de um país árabe rico, neste caso, mais do que aquilo que é mostrado no ocidente via telejornais alarmistas e por vezes (muitas vezes) extremamente redutores.
Esta introdução serve o propósito deste texto que é o de dar enfâse à chamada irmandade árabe por via de negar que seja a religião que os une. Expliquemo-nos.
A impressão com que fiquei e fico é a que é , fundamentalmente, a língua que une as nações árabes. Ou seja, há de facto uma grande identificação mas ela é sobretudo linguística, primeiro, e geográfica, depois. Não chamamos nós "país irmão" ao Brasil porque falamos a mesma língua? Não chamamos nós "nuestros hermanos" aos espanhóis porque partilhamos a Península? Entao, que esperar dos árabes, falantes da mesma língua (com algumas variantes) e perto uns dos outros na sua localização geográfica? Trata-se, de facto, de uma grande irmandade. Um pouco à semelhança daquela que existe na América Latina espanhola. Ouvem-se as mesmas canções e artistas de país para país, vêem-se os mesmos filmes e telenovelas de nação para nação, conhecem-se obras de autores e pensadores vizinhos e cuja língua podem entender e desta forma ler e conhecer.
E acrescento. Há países muçulmanos não árabes e a proximidade cultural e desta forma afectiva não é tão forte. Um argelino não se sentirá tão ligado à Turquia. E menos à Albânia. E bastante menos à Bósnia. Depois menos ao Irão. Depois ainda menos ao Paquistão e ao Afeganistão. Ainda menos às ex-repúblicas soviéticas do Uzbequistão e Turcomenistão e as outras. E ainda menos à Indonésia. E ainda menos ao Brunei. E menos menos às Ilhas Maurícias. Percebem o que quero dizer?
A união entre os árabes decorre da compreensão linguística e, consequentemente, cultural que os contempla e que é fruto da história e da geografia. A questão religiosa é, por muito que muitos achem que não, secundária e muito mais fragmentária. Se a região árabe fosse uma babel europeia esse sentimento de família seria muito menor ou nem existiria. É minha forte impressão. Registo-a aqui.

Bocadinho de mim


Tenho andado a reler algumas crónicas escritas por mulheres portuguesas e que tenho em casa, algumas já há bastante tempo. Os estilos são variados, umas mais profundas, outras mais superficiais, outras mais ternas outras mais científicas, umas mais sensíveis outras mais robustas.
Mas, de todas, provavelmente as de que mais gosto são as da Helena Sacadura Cabral. O livro "Bocados de Nós" está escrito de forma intimista, como bem gosto, e perpassa quer sensibilidade quer inteligência. A estas alia-se o gosto pela liberdade. Talvez por isso, e salvaguardando as diferenças no tempo e outras que mais, me identifique bastante com registos  por ela observados. Depois, está escrito de forma simples, autêntica e com uma clara intenção que é naturalmente perceptível. Ou seja lê-se e tira-se, de facto, alguma coisa. Há uma conclusão, uma ideia, uma mensagem. Não se limita a jogar com as palavras, pelo contrário, há mesmo uma ausência de jogos vocabulares ou estruturais, construídos propositadamente, muitas vezes, e sem nexo absolutamente nenhum. Não sou grande apreciadora de textos confusos, obtusos, difusos, sinuosos. Prefiro ideias filtradas pela transparência e pela clareza.
A Helena foca muitos pontos em que me revejo. Desde o seu pouco romantismo, aquele óbvio, comum e nauseante, até à sua pouca compreensão para com mulheres submissas e demasiado fúteis, até ao não ser "passadista" - de facto, estou sempre a olhar para o futuro -, enfim, a autora desfila uma lista de impressões que são um prazer ler e que nos fazem reflectir de forma coerente, lúcida e livre. Gostei também e muito do preambular prefácio escrito pelos seus dois filhos, tão diferentes, como sabemos, na sua visão política mas tão perto no afecto e reconhecimento dos talentos da mãe.
Parece-me ser, então, uma mulher de grande dignidade, livre no pensamento, franca e verdadeira, sem fazer concessões, em temas chave para mim como são os comportamentos humanos e os afectos. Curiosamente também, muito serena e tranquila na forma como expõe e assume as suas inquietações  ou irritações. Humana e humanista. Tudo muito eficaz, porque  natural e simples.