março 03, 2011

Mortificação




Dizia então eu que a Helena Sacadura Cabral faz observações no seu livro de crónicas com as quais eu me identifico bastante. Uma delas é a de achar que não compreende porque é que a ideia de sacrifício tem de estar associada à existência feminina. Ou seja porque é que a mulher tem de viver sacrificada e sofrida de alguma forma. Trabalho, obrigações domésticas, filhos e família, e todos os papéis que desenvolve ao mesmo tempo com grande esforço e muitas muitas vezes trazendo o esquecimento dela própria como ser individual, pensante e livre.
Será praticamente incontornável a ideia que tal sorte terá vindo através das gerações atingindo as (nossas) mães. Não tendo conseguido estas libertar-se e ter pensamento próprio, o que fizeram foi incutir nas filhas essa ideia de sacrífico, de dedicação extrema e sofrimento pelos outros, derrotadas por sentimentos de culpa surgidos por causa dessa forte moral nelas incutida. Moral ou moralidade. Pesada, incapacitante, castradora. Que têm que estar, de várias formas, ao serviço do homem, numa perspectiva toda ela machista que só arrasta, por exemplo, a já de si pouca colaboração masculina em termos domésticos, na generalidade.
As mulheres que não gostam de se sacrificar e assumem isso são consideradas egoístas, preguiçosas e inadequadas na sua performance sob a idealização feminina das gerações precedentes. E são consideradas assim também pelas suas pares de geração, uma vez que as mulheres sacrificadas e demasiado centradas em aspectos do quotidiano familiar e laboral que teimam em persistir acham as outras umas inúteis sem coração, altivas e não solidárias com o próximo.
Acontece que a nossa participação na sociedade não passa só pelo cumprimento dos deveres e ainda por cima com excesso de zelo. A vida não pode ser só penitência e tormento de moral cristã e de outras confissões. Também existimos ao usufruirmos dos prazeres e das liberdades que nos foram sendo concedidas por muitas lutas travadas. Também existimos como seres pensantes e intelectuais (ou isso tem que ser só para os homens? Era o que faltava.). Também existimos como opinadoras e quebradoras de barreiras. E tudo isto de forma consciente, fruto da nossa escolha, e livre, profundamente livre.
Ainda que com muitas obrigações (quão difícil é ser mulher com milhentos papéis a desempenhar) decididamente não temos que viver amarguradas e presas a esquemas sociais e familiares que nos tolhem as ideias. Não temos que ser escravas de ninguém.  Em casa mas também no trabalho. As mulheres que são escravas do emprego também não estão libertas. Alguns sacrifícios são exigidos mas caberão a todos, homens e mulheres. Nenhum estigma ou lei me diz que devo aceitar o sacrifício como um desígnio divino ou pior como um fado imposto por mulheres que não pensam ou que não se amam o suficiente.

4 comentários:

  1. Apoiado. Abaixo os sacrifícios. Para se ser santa é preciso ser sacrificada, de preferência na fogueira! Eu de santa, só o nome e é de uma santa cigana (portanto também deve ter ido parar à fogueira, não sei). Uma pessoa passar dos trinta sem ter as rugas e as estrias e as brancas e as lamúrias do sacrifícios, é muito muito mal-visto. Os meus sacrifícios são como as vitórias morais do futebol ;)

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  2. Deus dá o frio igual à roupa e o trabalho igual à capacidade. :)Mulher é incomparavelmente mais forte e mais inteligente que o homem. É justo, portanto, que dê à nação incomparavelmente mais. "De cada um segundo as suas capacidaes; a cada um segundo as suas necessidades" é um sacrossanto mandamento comunista. Et voila... :)
    Muito bom texto.
    joao de miranda m.

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  3. Com efeito...Também no Ocidente nos colocam a Burka,de variadíssimas formas e feitios...Quem nos veste assim condena os fundamentalismos extremistas dos muçulmanos...e não se apercebe que as amarras,os açaimes,os laços (que sejam até de seda!)com que nos atam punhos e voz,são tão pesadas como as outras...Já senti tão "AEfectivamente" como tu!...
    Nené

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  4. Nené o teu comentário é do melhor. É isso tudo que dizes. As pessoas acham-se aqui muito livres mas nem sempre o são. Sobretudo se usam saias. E o pior é essa missão de sacrifício ser imposta por quem também as usa... Faty
    P.S. Obgda pelos comentários.

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