Pode a amizade assemelhar-se ao amor no que pode ter de mais negativo?
Pode. Os amores que prendem demais as vontades, que vigiam os movimentos, que controlam os círculos sociais de forma obsessiva, não são, facilmente, coisa de que se goste. Digo eu, e na maior parte dos casos. O ciúme extremo e os infernos a que pode levar à partida parecem só pertencer à esfera do amor, numa vivência de quem vive a cem, duzentos por cento a paixão. Ou o poder que dela querem fazer brotar.
Quando falamos em amizade, à partida definimo-la como algo de bom, algo que não cobra nem se pode cobrar. As pessoas escolhem os seus amigos, não vivem com eles, não existem compromissos de mil e um aspetos onde é preciso ceder, retroceder, negociar, jogar até. Os amigos sentem-se bem juntos, conversam, dão gargalhadas, bebem uns copos, vão à praia e ao cinema, exercitam o corpo no ginásio ou ao ar livre, marcam hora ou não, vão e veem, veem e vão. Confiam segredos, podem contar uns com os outros, cultivam afinidades e percorrem caminhadas de ousadia e perigos juntos, tantas vezes.
Há amizades que são de sempre, que duram anos e anos, uma vida até. Há outras que foram e não são mais, outras que surgem, outras que se renovam depois de interregnos voluntários ou não, amizades físicas, bem reais que passam por um generoso aperto de mão ou um sincero abraço, e outras pode haver virtuais, porque reconfortantes em palavras e ânimos que vêm de longe, às vezes sem rosto, mas que ainda assim podem ser pilares de apoio em momentos mais difíceis.
O amor terá disto, é certo, mas muito mais. Definir e descrever o estado amoroso podia de facto passar por falar de aventuras partilhadas, mas iríamos muito mais longe, mais devagar, porque o amor, sobretudo se só revestido de aspetos positivos, dar-nos-ia asas para voar bem e bem alto.
Como pode então a amizade adquirir contornos negativos que lembram o amor possessivo? De várias formas. Se os nossos amigos nos acham propriedade exclusiva deles, tolhendo-nos inclusivamente desejos e programas, então estamos no bom caminho para responder à pergunta. Ou no mau, mais exatamente. Se eu quero explorar novas possibilidades de amizade e me sentir coagida a não fazê-lo, porque pertenço a um grupo de amigos em exclusivo que não me libera, então estão a prender-me. O facto de sair sistematicamente com alguém, ou em grupo, não me pode roubar a liberdade de ocasionalmente não o fazer. A ciumeira de amigos não faz sentido – o medo de perder o amigo não é real na amizade verdadeira. Porque podemos ter amigos por diferentes razões, porque nos dão coisas diferentes. Um diverte-me, o outro aconchega-me. Um compreende-me porque vive o mesmo, o outro dá-me uma perspetiva nova porque não vive o mesmo. Com uns partilho medos e fragilidades, com outros partilho ideias loucas e planos aventureiros. E posso desejar estar com eles em momentos completamente díspares, assim sendo. O facto de não fazer tudo com o mesmo amigo não pode deixá-lo enciumado e a cobrar presença ou afeto o tempo todo em exclusivo.
Namorado existe para dar dor de cabeça também, amigo não. Namorado existe para perguntar onde estamos, onde vamos e a que horas, amigo não. Namorado usa relógio, amigo não. Namorado é chato, amua e faz birra, amigo não. Namorado desconfia, credo mas é verdade, amigo só confia. Namorado faz beicinho quando a paixão comanda a razão, amigo não. Amigo não pode funcionar com alavanca de paixão. Namorado amarra, amigo não tem amarras.
Porque se tem, o seu conceito de amizade anda um bocado baralhado. Claro que a maturidade tem muito a dizer neste processo, no amor ou na amizade. Alguém maduro deverá, deveria, controlar exageros de possessividade e ciúme juvenil. E nós também crescemos e amadurecemos. Não se aceita, e focando-nos na amizade, quem controla a nossa vida. Amigos a sério respeitam o nosso espaço, físico e psicológico e nós o deles. Ser feliz é ser livre. Ser feliz é ter amigos que nos deixem sê-lo.
(escrito para o site baiano onde colaboro)