Sou uma grande felizarda e muito feliz. Tenho tudo e não me falta nada. Peço desculpa por ser exigente, ser caprichosa, querer mais e queixar-me. A minha vida é óptima e mais não se deve desejar. Mas qual a razão de tais conclusões, indaga-se o leitor. Certo, há de facto uma explicação. É que ontem revi Beyond Borders (Amor sem Fronteiras). E se juntar O Fiel Jardineiro e Diamante de Sangue, fica completa a trilogia de verdadeiros sangue, suor e lágrimas que tais filmes comportam. Vê-los significa simplesmente repensar todo o nosso comportamento...
Temos sorte. Muita mesmo. Viver na Europa, EUA, Japão e afins é uma golpada de sorte decretada à nascença. Tirando a doença, que não distingue continentes, cores, nacionalidades e pessoas, os nossos problemas parecem ridículos perante a angústia e sofrimento de outros que vivem em zonas devastadas pela fome, pela guerra, pelo ódio. Na verdade, nós não sabemos nada acerca do sofrimento. Nada mesmo. Não sabemos o que é lutar para literalmente viver, ou melhor, sobreviver. Resistir, e muitas vezes sucumbir, perante grandes adversidades. Que consistem na falta de condições básicas para subsistir. Coisas perfeitamente triviais para a maioria de nós, tomadas como garantidas desde sempre.
Visionar estes filmes dá-nos um soco no estômago, e faz-nos sentir alguma vergonha de nós próprios... O facto de sermos tão sortudos, o facto de não ajudarmos, provavelmente como deveríamos, o facto de não estarmos lá e de estarmos numa zona de conforto e segurança, o facto de criarmos problemas a partir do nada... Pelo menos durante duas horas, penso poder dizer que é impossível não reflectir na injustiça de tudo isso, na profunda desigualdade em que os seres humanos vivem, na tristeza e na angústia de vidas fora do próprio controlo, na imensa crueldade de certas existências.
O tema dos refugiados, deslocados e outros que tais sempre me emocionou profundamente. Não tendo eu própria jeito nenhum para o voluntariado, e chocando-me facilmente com a miséria, admiro de forma invulgar o trabalho das organizações não-governamentais e outras, que trabalham no terreno, para aliviar o sofrimento das pessoas em necessidade. Deixar o conforto para trás, ir ao incerto e trabalhar de forma abnegada e solidária, por pura bondade e capacidade de sacrifício, trata-se de algo admirável. A personagem de Nick é fantástica, emociona-nos, comove-nos e, diria, move-nos. Mas não são só os médicos que merecem louvores. Desde pessoal voluntário até trabalhadores dessas organizações, até aos jornalistas e repórteres que cobrem as notícias de regiões perigosas, pondo em risco a sua própria vida, todos eles merecem a nossa admiração. Pela ajuda, pela coragem, pelo abdicar de uma vida fácil e confortável. Penso que também são heróis, para além dos nativos que vivem em grande sofrimento físico e psicológico.
Já há algum tempo que queria dizer tudo isto "publicamente". E, pelos comentários que vi na internet acerca do filme de ontem, não sou a única a manifestar desconforto perante as pequenas irritações do meu quotidiano. Elas não são nada, comparadas com boa parte dos problemas do real mundo. Claro que também não nos vamos torturar infinitamente por causa disso mas se tivermos consciência do que verdadeiramente importa, então seremos todos bem (mais) felizes...do lado de cá. Do lado de lá...bem, não será de felicidade que se trata. Apenas, e para já, tão somente, vida....