"Too British for the Indians and too Indian for the British". Era assim que a personagem de Hari Kumar, em A Jóia da Coroa, falava da sua evidente e fatal incapacidade de pertencer a um só lado. Indiano educado na velha nação colonizadora, a zelosa formação e educação a afastarem-no dos indianos em convulsão anti-britânica e a cor a e a raça a não deixá-lo diluir-se na cultura anglo-saxónica.
Emblemática, esta dificuldade em pertencer unica e exclusivamente só a um flanco, porque pode ser estendida a muitas outras dimensões que não a étnica ou a política. Estar entre dois mundos, através de variadas circunstâncias, é mais incómodo do que se poderia pensar. E, no entanto, dá-nos uma visão porventura privilegiada, imparcial, justa do que pode ser o certo e o errado. Poder entrever duas realidades contrastantes, sentir-lhes as motivações e os problemas, compreender o que as move ou paralisa, deveria ser a melhor das posições, porque perto do ideal.
Porque se sentia Kumar, então, tão dilacerado? Porque é tão incómoda, afinal, uma posição que poderemos apelidar de intermédia? A justificação não será difícil. Ser independente e não alinhado, isso sim, é o mais difícil. Pela simples razão de que cair para um lado da barricada levanta muitos mais apoios. Quanto mais radical é a postura, mais adeptos congrega. Porque a radicalização levanta paixões que não se coadunam com atitudes mais racionais, mais equidistantes, mais sensatamente filosóficas. E o preço que essa independência de espírito comporta é muitas vezes demasiado alto. Ninguém quer nas suas fileiras nacionalistas, religiosas, políticas, étnicas, familiares e outras alguém que não adota o mesmo discurso, a mesma luta, os mesmos tiques.
A ostracização por ausência de cor ou farda pode dar cabo da mais forte e da melhor das naturezas. Porque o sentimento de pertença como forma de construção de uma identidade que tem um propósito é, de facto, importante. Se essa exclusão tiver como base pilares de afetividade, pior ainda. A resistência e a fidelidade àquilo em que se acredita serão ainda mais admiráveis, no caso de se manterem, apesar de tudo. Fácil é anuir, seguir o rebanho que nos diz querer proteger. Difícil é não o fazer, recusar uma proteção que não nos serve, ou que sabemos não ser justa. Difícil é estar entre dois mundos que se possam entender, ou não, ao mesmo tempo. Difícil e, ainda assim, portentoso.
Haverá decerto um Hari Kumar dentro de muitos de nós. Em grandes ou pequenas coisas, coisas que às vezes até podemos não ter pensado. Lutemos para que ele não sucumba, como no livro de Paul Scott. Aguentemo-lo, para travar os instintos mais primários, mais tendenciosos, mais viciosos. Para o bem, sem dúvida, para o bem comum.
“Haverá decerto um Hari Kumar dentro de muitos de nós”. Sem a menor das dúvidas. A sua reflexão vai na linha de muito do que penso. HFG
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