agosto 21, 2012

A Baía às/aos sete

Não me passou despercebido o centenário de Jorge Amado e, numa altura em que há um remake de "Gabriela" na televisão, no Brasil e brevemente em Portugal, aqui fica um texto que já escrevi há algum tempo atrás.
 
Acho que a minha primeira heroína foi a Malvina. Fui mesmo à cabeleireira e pedi um corte exatamente igual ao dela, cabelinho esticado, enrolado para dentro, a culminar numa grande tira em forma de vírgula, uma de cada lado, puxada para o rosto. Tinha sete anos. Não perdia um capítulo da "Gabriela", colava-me ao televisor por volta das sete da tarde e lá vivia as histórias das personagens.
Havia muitas, inesquecíveis, pitorescas, movendo-se aos ritmos e sabores da Baía. Nacib, o turco, que afinal era sírio, dono de uma loja ou de um café, que esta minha memória só regista parcialidades, perdido de amores pela morena Sónia sensualíssima Braga sorridente Gabriela, a do cravo e canela, sapato não, seu Nacib, sapato não. A moça não queria ser dama, queria ser livre, explodindo em naturalidade, mesmo em inocência. Tonico Bastos, narcisista de meia tigela, sempre agarrado ao pentinho minúsculo que frequentemente lhe penteava o também minúsculo bigodinho, símbolo da fanfarronice da sua persona. Maria Machadão, dona do bordel local, ao mesmo tempo carrasco e anjo da guarda das suas meninas, pessoa de poder a quem os coronéis da cidade votavam algum respeito. Dr. Mundinho, um José Wilker de pequeno bigode, idealista de coragem, ousando afrontar o domínio dos coronéis, apaixonado e correspondido pela Jerusa, de quem a minha avó materna dizia ser parecida com a minha mãe. Moça bonita, de boas famílias, mas talvez qualquer coisa de mais ou de menos, já que a minha preferência, fruto da minha infantil perspetiva, ia para a sua amiga Malvina.
Esta era uma jovem idealista, também, e (mas?) com um caráter revolucionário, Várias vezes abalou as estruturas familiares e a cidade com as suas ideias e personalidade, forte, decidida, autêntica e rebelde. Não teve uma historiazinha de contornos fáceis ou previsíveis, o papel de ser discreta, namorar e casar bem, ser uma senhora. Depois de se envolver com o tímido e atrapalhado professor local. acabaria por se ligar com intensidade a um forasteiro de grande charme, mas casado, uma história que não iria resultar e que levou a minha heroína, nos últimos episódios, a abandonar a cidade para procurar a felicidade noutro lado.
Eu tinha sete anos. Não me recordo de muita coisa, mas retenho imagens de beleza paisagística, por entre palmeiras e sol, sons de músicas cantadas naquele sotaquezinho quente, registadas numa velha cassete de feira que ainda guardo, percursos ligeiros, dramáticos, hipócritas, verdadeiros,e por entre este mundo fascinante e nada menos do que fascinante criado pelo amado Amado, revejo, já numa perspetiva mais adulta, a postura da Malvina, o seu não conformismo, a sua audácia e a sua maravilhosa determinação, a sua consciência e diferença. E no meio de tudo isto, fico com saudades, de um tempo e de um espaço que não conheci, saudades da inquestionável fidelidade às sete da tarde, saudades de Ilhéus e do calor daqueles cenários de Vera-Cruz...
É verão. Tenho uma amiga que está de férias no Brasil e que visitou a Baía. Deus, também eu gostava tanto de matar estas saudades.

Jornal O Recado, ESAP

6 comentários:

  1. Partilho essas memórias... :)

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  2. A novela Gabriela foi uma das que marcou uma "virada".
    Repleta de ótimos atores e atrizes.
    Quanto à obra de Jorge Amado (minha nossa!) é vasta, sempre revolucionária, crítica e sensual.
    Dos livros que li, o meu preferido é "O País do Carnaval".

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  3. Deste capitão da areia, velho marinheiro e cavaleiro da esperança, creio que li tudo.

    abraço

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  4. Gostei muito de "Jubiabá". E concordo com a Rosa, a escrita de Jorge Amado é muito envolvente, quente :)
    Nas novelas adaptadas, adorei "Gabriela", talvez porque representa uma época e ficou na memória coletiva; "Tieta do Agreste" foi também excelente, com personagens engraçadíssimas e marcantes...:)

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  5. Agora entendo porque tive esse corte até à adolescência. A minha mãe insistia no look da Malvina. Não acompanhei a novela por razões óbvias, mas a sua história fez parte do meu imaginário. A Gabriela e todas as obras de Jorge Amado, um dos meus autores preferidos, sempre me encheram as medidas. Começa amanhã o tão aguardado remake a terras lusas, que no Brasil passa só à meia-noite. Eis o novo elenco: http://visao.sapo.pt/quem-e-quem-na-nova-gabriela=f684815
    Marla

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  6. Vamos ver se a nova versão apaga as memórias da primeira...:) Será difícil porque os olhos da meninice e daqueles tempos inocentes em relação a tanta coisa já não estão:)

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