O Frio do Nosso Descontentamento
1. Absolutamente e, por vezes, brutalmente real, a verdade é que o frio também faz parte do imaginário colectivo universal. Nas sociedades ditas ocidentais, por exemplo, a sua alusão na cultura popular tem sido deveras constante. Desde os nórdicos postais de natal, preenchidos com cenários de neve que muito fizeram as nossas fantasias da quadra, até à literatura e ao cinema (vejam-se livros como O Espião que Veio do Frio, de John LeCarré, e filmes como Cold Mountain, de Anthony Minghella), sem esquecer a música com inúmeras composições a destacarem quer a palavra quer o conceito logo a partir dos seus títulos (Cold as Ice, Foreigner, Baby It´s Cold Outside, Ray Charles, Cold, Tears for Fears, I´ts Cold Outside your Heart, The Moody Blues, e muitas outras). E não esqueçamos a visão romântica que a sua estação também a muitos proporciona. O crepitar da lareira, o prazer renovado da leitura, o aconchego da lãs, as bebidas quentes, os serões familiares, a conversa mais intimista...
Muitas vezes severo e dizimador, o frio tem jogado a sua quota parte de importância também no decurso da história. Dois quase invencíveis exércitos por causa dele sucumbiram, com a Rússia a clamar para si vitórias sobre as tropas de Napoleão e, mais tarde, de Hitler (general inverno apresenta-se!). Prova de que a natureza é avassaladora e poderosa, com os rigores do inverno a terem efeitos na moral, alma e corpo de milhões de pessoas. Mais recentemente, o conceito de Guerra Fria foi expressão dos antagonismos sociais e políticos entre os Estados Unidos (e aliados) e o bloco soviético até ao desmonoramento deste.
2. A noção de/do frio está presente para além das dimensões geográficas e climáticas. Também a encontramos na vertente psicológica, ajudando a destrinçar traços de personalidade. Os povos de expressão inglesa distinguem claramente a palavra cool ( e não cold) da hot-tempered para descrever as pessoas e as suas atitudes e reacções. Têm até uma expressão idiomática engraçada para atribuir aos carácteres que dominam mais as emoções, ou melhor, paixões: as cool as a cucumber. De facto há seres humanos que têm claramente a capacidade de se manterem algo fleugmáticos perante inúmeras questões, por oposição aos indivíduos mais explosivos e vulcânicos. Mantêm, pois, a cabeça fria. O ideal de reacção, o domínio da mente, o oposto da impulsividade. Tal como no tempo fresco (cool morning, cool breeze), as situações são vividas com maior suavidade.
Para além da língua inglesa, também na portuguesa, e porque as palavras transmitem ideias, encontramos várias expressões que nos remetem para a significância do conceito “frio”. Realizou tudo a sangue-frio (indicando extremo auto-controlo). Senti-me gelada (medo, desconforto emocional). Sentiu um frio na barriga (nervosismo). E outras do género.
3. Mas desenvolvamos a ideia de frieza associada à natureza das pessoas. Como definir um indivíduo frio? Dizer que ele é ”cold-hearted” ( de coração frio) à partida descreve alguém como sendo duro, com dificuldades em sentir compaixão. Parece haver aqui uma ligeira diferença entre dizer que ele é “cold”, curiosamente. As pessoas verdadeiramente frias serão aquelas em que há ausência de paixão, de sentimento, em última instância, de afectividade. Trata-se de uma noção bem mais subtil. Assim parece, realmente. Há pessoas simpáticas (leia-se o contrário de sisudas), comunicativas e aparentemente muito dadas que na verdade revelam, talvez inesperadamente, uma grande falta de calor. Os afectos são dificeis de desenvolver, manter, prevalecer. Há claramente uma sobreposição do mental sobre o coração. Por vezes há nelas uma franqueza desprovida de qualquer inteligência emocional, as palavras incomodam e mesmo ferem, ainda que ditas no meio de sorrisos, e elas não se apercebem ou não querem saber do impacto das mesmas. Não estejamos com meias palavras - não nos aquecem, pura e simplesmente.
Há, por outro lado, uma grande dose de superficialidade nesses indivíduos. Superficial quer dizer não ir profundo, não sentir até ao amâgo, não entusiasmar-se muito mas também, e consequentemente, não sofrer muito. Conseguem desta forma sobreviver a questões que seriam mais problemáticas para pessoas mais sentimentais e com maior insight psicológico. Sem picos de emoção, a dor atenua-se sobremaneira, dir-se-ia.
4. Quanto à frieza, efectivamente, trata-se apenas de uma característica. Talvez muitos de nós ou mesmo todos tenhamos uma faceta assim. Ela é o expoente máximo do nosso lado mais racional, que trava muitas das nossas acções, más e também boas. Mas provavelmente por esta última consequência, e tendo em conta o frio de rachar de Janeiro, aqui fica a sugestão: aqueçamo-nos com o fogo de uma lareira e de um afecto. O frio tolera-se em doses q.b. Ondas de calor são bem vindas, já que as palavras sairão também elas mais calorosas e o coração, nosso e dos outros, sentir-se-á mais reconfortado e mesmo feliz...
Oi Fatinha! Que dupla surpresa: tu e a Sara no blogworld! Adoro os teus artigos, apesar de não os conhecer todos... Este está muito interessante por se tratar de emoções: é deveras um assunto fascinante e ao qual não sou indiferente... nas viagens, tenho constatado como os povos são diferentes: nós, os latinos, de sangue quente, impulsivos, apaixonados, mais conviviais... por oposição aos povos do Norte, alemães & Ca., frios, distantes, totalmente racionais, tudo é planeado, espontaneidade nula,... enfim, assim é o mundo! Muita motivação e inspiração para continuar a escrever estes textos tão criativos! bjs "calientes" da Alemanha Marla
ResponderEliminarObrigada Marlinha... Fico feliz por isso, por gostares de ler sobre as emoções e os comportamentos, eu adoro escrevê-"los". Eu vou colocar aqui os textos todos, aos pouquinhos... Vamos ver:)Hope you like the rest, too!
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