outubro 05, 2014

No mundo dos surdos num mundo de surdos



Ontem assisti no Coliseu do Porto à peça Tribos, da autoria da inglesa Nina Raine e trazida por António Fagundes a Portugal. Não se tratando de uma alegoria propriamente original - a ideia da surdez física ser menos cruel do que a surdez emocional - a verdade é que momentos como estes levam-nos indiscutivelmente a confrontar-nos com as nossas muitas intolerâncias mentais, as quais excluem da nossa vida tudo e todos os que se apresentam, pensam ou regem sob ângulos de diferença variados.
Afinal, quem é o surdo? Aquele que não ouve por deficiência orgânica ou aquele que, saudável, não quer e não sabe escutar? Quem é que tem dificuldades evidentes de comunicação? Aquele que não sabe o que são sons, lê os lábios ou usa a linguagem dos sinais ou aquele que, fisicamente são, se fecha em si mesmo, nas suas razões e nas suas ideias, incapaz de se colocar no lugar do outro? Surdez psicológica de quem não sabe ouvir. Incomunicação de quem não quer ou não sabe chegar ao outro. De tantas formas, em tantos lugares. Este é o universo dos desafetos que exclui invariavelmente os surdos e os portadores de uma deficiência mas também tantos outros que estão fora do padrão de alguma maneira.
A peça centra-se numa família disfuncional, mesmo segundo as palavras de Fagundes proferidas durante a conversa com o público depois da peça, e em que as relações são povoadas de agressividade, palavrões e barulho. Um ruído que conota a ausência de serenidade e confiança, que reforça por contraste o isolamento das personagens e a sua alienação num quotidiano de frustrações e de conflitualidade. Fagundes caraterizou a peça como "uma comédia perversa" e de facto são vários os apontamentos de humor negro e de uso do vernacular que nos vão, talvez perversamente, pois então, arrancando umas gargalhadas. Em todo o caso a intriga toca-nos e a mensagem é clara: a surdez da alma é mais comum e trágica do que a surdez real. Basta estar atento para perceber isso. Basta, numa palavra, ouvir.

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