outubro 25, 2011

Os Mortos



Há uns anos leccionei uma obra de James Joyce, em inglês mas adaptada a miúdos, para a  leitura extensiva que se pedia no 9º ano. Foi escolha minha ( apoiada, felizmente, pela colega com quem trabalhei) por ter gostado tanto de a ler na universidade. No original, The Dead, uma short story que faz parte de Dubliners (Gente de Dublin), conta a história irlandesa de um casal assombrado pela morte dum antigo amor da mulher. Este chamava-se, porque não esqueço, Michael Furey e, doente,  passou uma noite à chuva, encharcado torrencialmente até de manhã, por amor a Grettta,  morrendo depois de uma pneumonia.

O marido, Gabriel, não é capaz de expressar o grande amor que tem pela esposa e sofre ao descobrir que ela ainda relembra o amante, muito tempo depois. Inseguro, interroga-se onde é que falhou. A questão de fundo subjacente à obra é saber se é preferível arriscar e poder morrer cedo, deixando marcas profundas, sobretudo e aqui no coração dos outros, ou levar uma vida longa, sem riscos nem paixões e sem, desta forma, deixar marcas da sua tranquila passagem pela terra. A frase no livro, em inglês, é ela própria inesquecível e emblemática. Better pass boldly into that other world, in the full glory of some passion, than fade and wither dismally with age.

Não é a primeira vez que relembro esta obra nos textos que escrevo. De facto, a discussão desta difícil escolha foi muito bem entendida e trabalhada pelos alunos (sim, eram excelentes) e foi por demais interessante ver como optavam por um caminho ou outro, justificando-se, e na impossibilidade de, idealmente, terem os dois: viver muito intensamente e/ou viver longamente. Uma espécie de live fast, die young? Ousar, obter o sabor máximo da vida, pagar um preço alto por isso e tornar-se depois imortal, espiritualmente? Ou preferíriamos o contrário? Nunca ousar, viver by the rule,  morrer de velho e desaparecer-se completamente com o corpo? Viver  e morrer em glória versus simplesmente existir.

O verso de Dylan Thomas "Do Not Go Gentle Into That Good  Night" transparece claramente aqui. A noite como metáfora da morte e a suavidade como sinónimo de brandos atos ou ações.  Relembrando os mortos da comunidade num jantar no Natal, numa Irlanda aqui coberta de uma simbólica neve, a personagem de Gabriel surge cultivada, racional, serena, aborrecida, "pequena". Michael Furey, ao invés, surge cheio de ímpeto, fogo, paixão. E, naturalmente, Gretta preferiu este último. Penso que a história é um retrato de muitas relações estáveis, apagadas, sem chama, mortas, se olharmos para o casal protagonista, e de como a alma feminina anseia por muito mais, um rasgo, uma ousadia, um ato de amor louco, que incendeie os seus devaneios românticos.

Fiquei fascinada pelo "livro", ao contrário do que um título assim poderia sugerir. Ainda por cima vi e continuo a ver o espantoso Gabriel Byrne, ele próprio irlandês, na figura da personagem homónima (mas que não protagonizou o filme de John Huston, curiosamente). Assim, The Dead para mim está vivo. Bem vivo, apesar de não ver ninguém na figura de Michael Furey. Mas também não teve ele a parte mais difícil? Ou será que não? Leitor, escolha o seu caminho. Ou não.

3 comentários:

  1. ‎"Penso que a história é um retrato de muitas relações estáveis, apagadas, sem chama, mortas, se olharmos para o casal protagonista, e de como a alma feminina anseia por muito mais, um rasgo, uma ousadia, um ato de amor louco, que incendeie os seus devaneios românticos." Julgo que este pequeno excerto diz tudo! L.

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  2. Amazing text my friend. I'm definitely your fan and very proud to be. As you know, we fire people want to live fast and long if we can (after all, there is such a big world out there!)and the more passion the better! ;) Sagi

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  3. L.- percebo bem o que quiseste dizer;)
    Sagi - fico bem feliz por isso, como podes imaginar e por todas as razões. Ainda bem que gostaste do texto e ousaste comentar (um título destes espanta, assusta - foi halloween ontem - :))
    Bjinhos para as duas Bem vivos!!! *

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