novembro 28, 2010

Fronteiras de dor

                         
         Sou uma grande felizarda e muito feliz. Tenho tudo e não me falta nada. Peço desculpa por ser exigente, ser caprichosa, querer mais e queixar-me. A  minha vida é óptima e mais não se deve desejar. Mas qual a razão de tais conclusões, indaga-se o leitor. Certo, há de facto uma explicação. É que ontem revi Beyond Borders (Amor sem Fronteiras). E se juntar O Fiel Jardineiro e Diamante de Sangue, fica completa a trilogia de verdadeiros sangue, suor e lágrimas que tais filmes comportam. Vê-los significa simplesmente repensar todo o nosso comportamento...
         Temos sorte. Muita mesmo. Viver na Europa, EUA, Japão e afins é uma golpada de sorte decretada à nascença. Tirando a doença, que não distingue continentes, cores, nacionalidades e pessoas, os nossos problemas parecem ridículos perante a angústia e sofrimento de outros que vivem em zonas devastadas pela fome, pela guerra, pelo ódio. Na verdade, nós não sabemos nada acerca do sofrimento. Nada mesmo. Não sabemos o que é lutar para literalmente viver, ou melhor, sobreviver. Resistir, e muitas vezes sucumbir, perante grandes adversidades. Que consistem na falta de condições básicas para subsistir. Coisas perfeitamente triviais para a maioria de nós, tomadas como garantidas desde sempre.
          Visionar estes filmes dá-nos um soco no estômago, e faz-nos sentir alguma vergonha de nós próprios... O facto de sermos tão sortudos, o facto de não ajudarmos, provavelmente como deveríamos, o facto de não estarmos lá e de estarmos numa zona de conforto e segurança, o facto de criarmos problemas a partir do nada... Pelo menos durante duas horas, penso poder dizer que é impossível não reflectir na injustiça de tudo isso, na profunda desigualdade em que os seres humanos vivem, na tristeza e na angústia de vidas fora do próprio controlo, na imensa crueldade de certas existências.
          O tema dos refugiados, deslocados e outros que tais sempre me emocionou profundamente.  Não tendo eu própria jeito nenhum para o voluntariado, e chocando-me facilmente com a miséria, admiro de forma invulgar o trabalho das organizações não-governamentais e outras, que trabalham no terreno, para aliviar o sofrimento das pessoas em necessidade. Deixar o conforto para trás, ir ao incerto e trabalhar de forma abnegada e solidária, por pura bondade e capacidade de sacrifício, trata-se de algo admirável. A personagem de Nick é fantástica, emociona-nos, comove-nos e, diria, move-nos. Mas não são só os médicos que merecem louvores. Desde pessoal voluntário até trabalhadores dessas organizações, até aos jornalistas e repórteres que cobrem as notícias de regiões perigosas, pondo em risco a sua própria vida, todos eles merecem a nossa admiração. Pela ajuda, pela coragem, pelo abdicar de uma vida fácil e confortável. Penso que também são heróis, para além dos nativos que vivem em grande sofrimento físico e psicológico.
           Já há algum tempo que queria dizer tudo isto "publicamente". E, pelos comentários que vi na internet acerca do filme de ontem, não sou a única a manifestar desconforto perante as pequenas irritações do meu quotidiano. Elas não são nada, comparadas com boa parte dos problemas do real mundo. Claro que também não nos vamos torturar infinitamente por causa disso mas se tivermos consciência do que verdadeiramente importa, então seremos todos bem (mais) felizes...do lado de cá. Do lado de lá...bem, não será de felicidade que se trata. Apenas, e para já, tão somente, vida....

5 comentários:

  1. Li e gostei. Também me acontece pensar o que dizes. Damos como adquirido aquilo que para a maior parte da população mundial seria o paraíso. Claro que não é por isso que devemos baixar os braços perante o que se passa mais perto, mas... mas... por vezes viciamo-nos na lamúria. É quase culturalmente incorrecto o contrário! Bom domingo para ti! Eu vou preparar aulas, e testes para corrigir, e os corruptos dos politicos... ai, ai, ai! :))Luísa Alcantara

    ResponderEliminar
  2. Concordo plenamente contigo Faty. Temos tudo o que precisamos e mais ainda. Há, no entanto, dias em que nos sentimos os mais infelizes do mundo, frustrados e até por vezes revoltados por não termos mais ainda. Esses sentimentos não são nobres, mas o ser humano é assim, constantemente insatisfeito. Por vezes repensamos esses momentos...e "shame on me", sinto-me uma inútil frívola por estar com pena de mim própria. Admiro de forma incondicional os voluntários, e tal como tu, não sinto o apelo que me levaria do meu lar confortável, à triste realidade dessas pessoas tão necessitadas. Questiono-me muitas vezes...e entristeço-me e de nada serve essa tristeza.
    Agradeço o que tenho, os amigos que tenho, vou ajudando no que está ao meu alcance e mais perto de mim, e agradeço poder preocupar-me com outras coisas que não sejam o sobreviver.
    Obrigada Faty.
    Gi

    ResponderEliminar
  3. A história deste filme (que me emprestaste) ainda está bem presente na minha memória. Eu também admiro imenso as pessoas que lutam efectivamente por um mundo melhor. Já me passou muitas vezes pela cabeça de abandonar tudo e partir para outro país como voluntária e, no passado, já me questionei imenso por não ter inclinação para a área de saúde, pois adorava fazer parte da AMI ou dos Médicos sem Fronteiras
    Achava fascinante poder ir até qualquer canto do mundo e ajudar as pessoas que mais precisam...
    De facto,o filme faz nos ver como a nossa vida é incrivelmente facilitada se vivermos no sítio certo. E como o destino está fatalmente traçado para aqueles que nasceram em países que se encontram em situações de guerra, fome ou desastres naturais... As pessoas esperam e desesperam por ajuda, que muitas vezes tarda em chegar ou simplesmente não chega. É triste demais!
    Sinto-me, sem dúvida, cada vez mais consciente de como sou privilegiada por ser europeia: adoro o meu continente e identifico-me totalmente com ele, apesar de me sentir atraída por outras culturas/lugares. Aqui, é sem dúvida o melhor sítio para viver! Há pessoas de todos os continentes que pensam o mesmo, até os americanos sonham em viver na Europa, mas são poucos os que conseguem realizar este sonho...
    Concordo absolutamente com o facto de nos queixarmos demais! É a fartura! As pessoas que vivem em países menos priviligiados, digamos, não se queixam tanto! Aceitam as amarguras da vida com naturalidade enquanto nós estamos cada vez mais mimados e ambicionamos cada vez mais uma vida perfeita, onde tudo tem de correr bem...
    Que posso dizer mais? Este tema é deveras interessante e comovente! Escolhes sempre assuntos que me sensibilizam imenso! Continua amiga! Marla

    ResponderEliminar
  4. Olá Fatinha.
    Por acaso não vi nenhum dos filmes, mas de certeza que irei ver!!!
    Apesar disso, pela tua descrição dá para entender mais ou menos o tema e concordo plenamente com o que escreveste.
    É claro que temos de continuar a viver as nossas vidinhas, com problemas que às vezes nos parecem do tamanho de um elefante e quando nos confrontamos com outras realidades, chegamos à conclusão que afinal só são do tamanho de um ratinho!!!
    Não podemos fazer grande coisa para mudar o mundo, mas podemos ter consciência das injustiças e do sofrimento de outros povos e dar valor ao que temos.
    Isso aplica-se também a situações muito próximas de nós, porque infelizmente no nosso país há muita miséria e sofrimento. Não podemos chegar a todos, mas se fizermos um bocadinho, pelo menos ficamos com a certeza de ter minimizado a dor de alguém. Acho também que devemos incutir esse espírito aos nossos filhos: ter amor ao próximo, partilhar e dar valor ao que se tem, que apesar de aos nossos olhos parecer pouco, se virmos pelos olhos de quem nada tem... é muito!!!
    Obrigada por nos fazeres reflectir nesta realidade.
    Beijinhos
    Ana (prima)

    ResponderEliminar
  5. Os vossos comentários tb são belíssimos...obrigada eu por os partilharem comigo/connosco. Bem hajam meninas:) Bjinhos Faty

    ResponderEliminar