abril 17, 2010

LatinAmerica


Nas férias do Carnaval, e de uma assentada, fiz uma espantosa incursão pela América Latina. De uma assentada, disse, dois filmes a mostrarem histórias e pessoas. De uma assentada, já disse, duas figuras da cultura mundial a revelarem-se mais. Ernesto “Che” Guevara e Frida Kahlo. A revolução. A juventude idealista do primeiro. A arte. O feminismo atrevido da segunda. E também nela o idealismo. E também nela a revolução.
N”Os Diários de Che Guevara”, cujo nome original remete para a motocicleta, viajamos de forma ora trepidante ora ternurenta. Aventura a toda a prova, seguimos o trajecto de um Ernesto ainda jovem, por cidades e paisagens sul-americanas. Deslumbramo-nos com a imensidão dos espaços, sentimos a aridez de locais e de vidas, vibramos com a música ritmada e envolvente que nos arrasta por quase todo um continente.
Em “Frida”, é uma vida que se desvenda devido à imortalidade que a grande pintura permite. Aqui, acompanhamos o trajecto desta mulher num México colorido e fervilhante, mas também intelectual e cheio de fervor revolucionário. Aliás, não é por acaso que Diego Rivera pinta murais de inspiração marxista e não é por acaso que Leon Trotski se aí refugia, acabando depois por encontrar a morte.
Voltemos a Che. Este herói romântico que ficou na memória colectiva de muitos povos em busca da independência e na individual de muitos sonhadores de esquerda, surge aqui, e talvez curiosa e inesperadamente, caracterizado por uma franqueza às vezes demasiado desprovida de sentimento, demasiado fria. Nasceu em meados de Junho. Muitas vezes o olhar era distante, pensativo, a expressão carregada de idealismo etéreo. Dono de um inegável fascínio, sem dúvida. Mas a sua verdade era também nua e crua demais, quase clínica, talvez também como marca natural de alguém que estuda(va) medicina sem ser na área do estudo da psique. Assim sendo, “Os Diários” foram interessantes também, para mim, enquanto pequeno estudo da personalidade, até porque havia um paralelo a fazer com o seu amigo, e companheiro da aventura, Alberto Granado, também a estudar para médico, e em cujos livros o filme também se baseia. Este homem, que nasceu nos princípios de Agosto, era de facto bem mais egocêntrico e teatral do que Che. Estamos perante alguém que escondia a verdade, o que soará para muitos a falso, mas se atentarmos um pouco melhor, vemos que a escondia essencialmente para não magoar os outros, para não os assustar, fantasiando a realidade como reflexo de um coração mais generoso e afectivo... Leal a Che toda a vida, seguiria-o até Cuba onde, de resto, ainda vive e dirige uma importante clínica. Contudo, ou não, penso que a viagem de moto foi crucial para um Che que haveria de apaixonar aqueles que queriam e querem mudar o mundo. Creio que o contacto com as pessoas em sofrimento, quer físico quer social, o humanizou muito mais e que não voltaria a ser e que não foi mais o mesmo.
Voltando a Kahlo, ao visualizar a sua biografia no écrã, toda ela envolta numa fotografia quer plena de cor quer plena de fantasia que em muito se inspira nas telas da própria artista, vemos alguém com evidentes marcas de sofrimento, muito físico e algum psicológico. A sua vida está aqui praticamente toda retratada, por oposição ao filme sobre Ernesto Guevara. Há aqui e acolá um toque erótico, ou não tivesse Frida nascido em Julho, assim como uma pincelada de sentimentos indefinidos (a sua própria sexualidade revelava uma certa ambiguidade) e de confusão interior... De qualquer forma, é verdade que Frida nos toca e nos comove e nos desconcerta e arrebata e, sim, claro, como deve ter escandalizado formas de pensamento mais organizado e ou mais retrógado. Criativa e arrojada, doida e apaixonada, mas também resistente, suportando dor(es) e caminhando para a perenidade. Os seus quadros, pois, eternizam-se na nossa mente, no espólio cultural de cada um de nós, enriquecendo-o. As suas relações com Rivera e com Trotsky, entretanto, alargam o nosso conhecimento da história e a visão transversal que não podemos deixar nunca de ter da mesma. E depois, tal como no percurso de moto, o ritmo da música de sons hispânicos a acompanhar-nos, a fazer-nos sentir uma nostalgia estranha de algo que não vivemos e de lugares que não conhecemos.
Há nestes dois filmes, uma sensação de grande liberdade, de absoluta e infinita liberdade. Há também, inequivocamente para mim, um forte apelo à e um brutal gosto pela revolução. Revolução política, social, artística, humanista. Há também uma paixão, pela aventura e pela arte, um estudo também, da amizade e do amor. Ou dos amores, que podem ser a arte e a aventura, a geografia e a pintura. E, sempre, sempre, as pessoas, as suas histórias, os seus defeitos, figuras falíveis, porque humanas, tornadas mitos, os dramas, os humores, o humor, as contradições dos indivíduos e a criação, a causa, o sonho, a imortalidade.
Estes dois filmes vistos de uma assentada são também um inegável convite a viajar livres por um continente, lá, e um verdadeiro desafio a viver livres num outro, cá. Esquecendo-nos dos índices da bolsa e do telemóvel, da crise e do trânsito, das tarefas domésticas e dos deveres profissionais, dos almoços de família ao domingo que não nos apetecem e das compras no supermercado que também não nos apetecem, viajemos e vivamos pois no limbo que é o inesperado. Pelo menos durante quase cinco horas foi possível. Projectarmo-nos numa outra dimensão. Existirmos de uma outra forma. Dios, o que dois DVDs podem fazer. De repente, apeteceu-me ouvir os Jáfumega. Aliás, mais. Com a chegada das férias de verão, com a vida a pedir mais calor e mais ar, apetecia-me mesmo era apanhar o avião e rumar aos sons quentes da LatinAmérica...

2 comentários:

  1. Um texto magnífico, sobre duas figuras incontornáveis que fascinaram todos os que queriam e querem mudar o mundo.

    Boa semana

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  2. Obrigada, jrd, adorei escrevê-lo. Saiu numa edição do jornal da ESAP, O Recado. Quando o publiquei aqui, estava a começar o blogue. Comecei tão devagarinho, não tinha nem tenho nome...:) Vai pouco a pouco. Qualquer dia repesco o texto:)
    Boa semana a dobrar:)

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